Coluna de 9/2/2008
(próxima coluna: 9/3)
A MEMÓRIA ANCESTRAL
Busco a memória. Não a memória física constante nas células, mas a memória ancestral, a que carrego atrás do corpo. É saudade o que sinto. Ou talvez seja o mais próximo disso que se convencionou chamar saudade: um dedilhar de piano por sobre o silêncio, um fechar desses meus olhos sempre tristes, sempre impregnados de cotidiano, um calar que me leva além do visível, que recorre ao passado para socorrer-me. Por isso venho aqui, nesta casa oficial da memória, neste Museu Arqueológico de Sambaqui onde meus contemporâneos tentam destrinchar a vida dos primeiros, dos que amontoaram durante anos num mesmo lugar restos de alimentos, de animais, restos dos seus mortos, formando o que hoje são morros estranhos dentro da cidade, mas que em seu tempo serviram como morada, quintal, mirante. Os contemporâneos chamam de sítios arqueológicos. Descobrem nos restos como viveram estes índios, seus caminhares nômades, suas armas amoladas na pedra, descobrem o que comeram, o que vestiram, descobrem até a organização de sua sociedade.
Jamais descobrirão o que se lhes passava na alma, as ganâncias, os enlevos feitos de madrugadas e juncos, as alegrias profundas. Jamais descobrirão que fui um deles, que estive nesta terra e também contribuí com conchas para o sambaqui, que amei muito naquele tempo, não o amor romântico dos meus dias atuais, onde tudo são posses. Amei muito dentro da liberdade extrema que a selva oferece.
Esta saudade que se manifesta em mim vem do tempo em que eu era homem distante do concreto, do cinza cáustico da civilização. Esta saudade vem do tempo em que eu era árvore, jaguatirica, arara, vem do tempo que as penas dos tucanos enfeitavam meu torso e os crustáceos alimentavam meu corpo. Esta saudade vem do tempo que eu não precisava ler, escrever, lutar pela aparência, pela manutenção do carro, da casa, da vida atarefada de homem moderno. Fui um deles: Kuruayju foi meu nome real. Meu primeiro e único nome. É por isso que venho no Museu de Sambaqui resgatar o que eu fui, quando o que me determinava era a fome e a necessidade de saciá-la, o frio e a necessidade de contê-lo. Resgato aqui a memória do tempo em que eu era mais próximo da vida.
Hoje tenho um nome complexo, composto, mas vazio de significados. Meu nome de agora não diz nada, apenas me identifica como mais um entre tantos, foi escolhido ao acaso. Quando eu fui Kuruayju eu escolhi meu nome: “Sol. Serei Sol” foi o que minha alma, antes de nascer, sonhou a meu pai. Tudo foi confirmado pelo Nhanderu'i, o rezador da comunidade. Nasci à beira do rio que hoje é um cadáver líquido cortando a cidade. O meu destino de índio se compôs com a luminosidade intempestiva dos caçadores, com calor feliz de ser nu. Naquele tempo, antes mesmo de nascer, eu já havia determinado quem eu seria. Hoje, o homem que sou possui um destino comprado a dinheiro e poder. Não mais o destino determinado pelos céus de onde a alma vem. O homem que sou agora não pode mais catar conchas, cocos, paus e pedras para a construção de um sambaqui. O homem que sou agora desconhece por completo o tato da terra, pois compra casa e sepultura de cimento. Até meu corpo de morto desconhecerá a terra.
Observo no Museu um esqueleto, que história carrega estes ossos? Lembro da morte naqueles dias: pai, mulher, um dos filhos. A todos sepultei no Sambaqui. Continuei minha vida de Kuruayju, entre meus iguais, vivendo do que a natureza nos concedia, seguindo as tradições do meu povo, sem esta consciência corrosiva que tenho hoje. Éramos fortes e nômades e com o que restava do nosso caminhar construíamos os Sambaquis. Ainda continuamos vivendo entre iguais, a natureza continua nos alimentando. Alguns até falsificam a força nas academias, o que difere de antes é esta sensação de finitude, de que a vida acabará amanhã se não conseguirmos vencer, sermos o melhor em tudo. Antes não tínhamos esta máquina a nos devorar: o futuro. Tudo se moldava no presente, a sobrevivência era conquistada dia-a-dia.
Hoje, mesmo com toda a tecnologia que alcançamos, nossos restos atuais estão nos lixões, estão entupindo os rios, estão engravidando as nuvens de veneno. Não construímos mais sambaquis com o que restou dos alimentos, das fogueiras ingênuas ou dos nossos mortos. Jogamos os restos nas periferias, alguns dos humanos atuais estão lá comendo o que outros rejeitam.
As ferramentas, e as pedras em que amolei as ferramentas, estão aqui em redomas de vidro para a visitação pública. Parecem aquários mortos. Estes objetos ganharam o nome pomposo de ‘objetos líticos'. A natureza manteve as cicatrizes que fiz nas pedras, mas e os ferimentos que as pedras fizeram em mim? O quanto de meu sangue derramou-se na construção de setas, das facas, dos machados. Construir armas para a caça não era tarefa fácil, exigia habilidades, exigia que se adestrasse pela força a pedra contra a pedra, ate que ficassem aptas para a morte dos peixes e dos pequenos animais. Hoje tenho meus papéis assinados, minhas aplicações bancárias, meu dinheiro ganho com a ambição de homem moderno. Se naqueles dias eram as mãos que se feriam na construção das armas, hoje tenho a alma ferida na arquitetura de uma vida repleta de encontros sociais, de reconhecimentos profissionais e até familiares, mas em essência triste, distante da beleza, afastado por completo do primitivo. Por isso venho aqui: essas paredes me servem de narcótico, de fuga da realidade e retorno ao que fui. São instantes pueris desfeitos pelas buzinas dos carros, pelo falar incessante das crianças: alunos que visitam o museu. Observo as crianças, ainda não estão contaminadas, ainda trazem nos olhos alguns mistérios que os primeiros continham. As crianças ainda são as mesmas. Não evoluíram desde aquele tempo. Lembro-me dos meus filhos. Era bom vê-los aprendizes, curiosos, atentos à voz dos mais velhos, conhecendo pelo instinto o que os manteria vivos. Não tenho filhos agora, meu medo e egoísmo ainda não permitiram revelar este mundo a uma criança, isso me agonia ainda mais, este atual distanciamento do instinto, onde controlamos muito mais coisas, no entanto estamos cada vez mais perdidos e perniciosos.
Quando eu era Kuruayju o medo vinha da árvore assassinada por um raio, da jararaca camuflada no silêncio, o medo vinha dos maus espíritos que adoeciam nossos filhos, que retiravam os alimentos dos caminhos. Hoje, eu queria construir-me em mais fé, acreditar que meu destino não se faz desse vazio que sinto. Ter o mesmo olhar que eu tinha quando era Kuruayju, quando Deus se manifestava por aquilo que eu não conhecia, mas temia e respeitava, pois sabia que vinha dali a vida. Agora, temos um Deus preso nas igrejas, refém da crença miúda das gentes.
Por mais que meu mundo atual me forneça possibilidades de ser feliz, sou frágil demais para sustentar qualquer sonho. É só aqui dentro do Museu Arqueológico de Sambaqui que me reconheço mais humano, que me permito um pouco de sossego, de nudez. É dentro deste museu que desmascaro o homem que sou, trazendo à memória aquele homem que fui e que nunca esqueci. É nesse espaço que a saudade se confunde com a imaginação e ambas sedimentam a minha vida com alguma esperança de que Kuruayju não seja apenas uma memória ancestral resgatada quando venho aqui, mas que ele, repleto de liberdade, ainda determine os meus caminhos novamente.
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