Coluna de 9/4/2008
(próxima coluna: 9/5)
GÊNERO: suspense.
NÚMERO DE PALAVRAS: 694 palavras.
TEMA 1: Quase um começo
TEMA 2: Medo
Autor: Rubens da Cunha
Time: Hilst Lins
O Milagre
João Jesus de Deus não tinha esse nome à toa. Você vai ser milagroso, meu filho! Prenunciava a mãe quase todos os dias. A mãe morreu. Deixou nada para João Jesus, nem o acerto de sua previsão: milagroso? Passei longe de ser, lamenta-se.
Quarenta anos, é um insipiente contador numa firma de pisos e azulejos. Rotina, números e palidez fazem parte do seu milagre. João Jesus segue sua vida de sempre. Um dia saio daqui, vou abrir um pesque-pague, vou ser feliz, vou começar de novo! Sempre o mesmo pensamento enquanto prepara a isca no anzol, sentado à beira de uma lagoa, num pesque-pague nos arredores da cidade. João Jesus iria multiplicar os peixes, um dia, falta pouco, compro minha chácara, monto os tanques, jogo dentro umas tilápias, umas carpas e pronto: serei feliz. Terei meu cantinho, posso até arranjar mulher desse jeito. Antes tenho que me livrar de tudo que me cerca, tenho que me livrar.
Nas segundas, enquanto fechava seus cálculos, continuava sua via sacra de sonhos. Vou plantar umas árvores, quero um sítio cheio de palmito, pés de goiaba, gosto tanto. À noite, no supermercado, enquanto comprava sopas e macarrões instantâneos, vou fazer uma horta, beterraba, cenoura, gosto tanto. E João Jesus segue sua ladainha, mas antes tenho que me livrar de tudo que me cerca, tenho que me livrar. Tenho que ter um começo, deixar esse meu quase começo em que vivo desde sempre. Tenho que ter um começo!
Decidido, João Jesus vai ao chefe fazer um acordo. Nada feito, pode até sair, mas não vai levar nada. João Jesus não podia, 20 anos, o fundo de garantia era a certeza do seu terreninho no mato. Chorou, pediu pelo amor de Deus me entenda, nada, o chefe impassível, mexendo uns papeis sem olhar para João Jesus diz, olha, espera a aposentadoria, só mais 15 anos e pronto, aí você vai pra esse sítio, é o melhor pra ti.
Cordato, aceita. O chefe tem razão, não podia ser precipitado. Ao entrar em sua sala, João Jesus aproveita para chorar e sentir raiva. Não conseguira se livrar de tudo. Tudo ainda o cercava, ele bicho enjaulado de sempre.
Você não vai embora João Jesus? Pergunta o companheiro de trabalho. Não, vou ficar mais um pouco, tenho que resolver uma pendência. Ouve apenas um tudo bem. João Jesus está sozinho no seu jardim de caixas de arquivo. João Jesus sente-se traído por ele mesmo e tem medo. Eu tentei, mãe! Eu tentei ser milagroso pelo caminho certo, mas esse caminho foi tão cheio de espinhos, tão difícil, eu sempre tive medo, muito medo. Sem pesque pague, sem árvores frutíferas, sem hortas bem cuidadas.
Ué, dormiu aqui João? João olha, fuzila o curioso. Não interessa! Segue até o fundo do escritório e observa cada um de seus companheiros de trabalho. O que vai fazer com eles? Como vai se livrar desses que o enjaularam a vinte anos nestes metros quadrados de inferno? Você está bem João? Meu nome é João Jesus de Deus, foi minha mãe quem me deu esse nome, era para eu ficar bem, estou bem, vou ficar muito melhor, lá na cozinha tem faca? Deve ter, pra que você quer uma faca, João? Para descascar umas frutas que eu vou trazer lá do meu sítio. E se afasta e segue até a cozinha e percebe que não existe ali faca ideal para descascar as frutas. Vou sair um pouco, em meia hora volto. Dão graças a Deus, parece que tá louco o João Jesus de Deus, e riem a não mais poder. João ouve os risos.
João Jesus retorna ao trabalho com uma sacola cheia de laranjas, oferece a cada um dos companheiros. É lá do meu sítio, podem comer, não tem agrotóxico. Todos se olham, fazem caretas de surpresa, quase riem. Todos vêem João Jesus indo até a sala do chefe, fechando a porta atrás de si. O que você quer João, pedir demissão de novo? Não, vim trazer um presente pro senhor, mas antes tenho que descascar. Do que você tá falando João?
Eu tô falando do primeiro milagre de João Jesus de Deus.
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