JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 12/7
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Mário Chamie na sua: a verve a serviço da verdade

Quando Chamie se refere a Mário de Andrade, chamando a atenção do leitor para o fato de que o autor de Macunaíma tem um discurso sincrônico, “o que nos permite ter uma visão do todo a partir de uma obra isolada”, ele não deixa de se estar referindo a outro poeta de prenome Mário – ele próprio. Assim como o de Andrade, o outro Mário tem um percurso identicamente sincrônico na literatura em que milita: na poesia assim como na prosa ensaística, seu trabalho é revolver a palavra como o lavrador revolve a terra, germiná-la como faz o semeador e vê-la brotar até se tornar uma árvore frondosa e cheia de frutos. O ensaio que abre seu livro A palavra inscrita (Funpec, 2004), é, portanto, duplamente revelador: ao ser consistente na apresentação da hipótese de que qualquer crítico cometerá grave erro se tentar isolar um texto do escritor que ele analisa, distinguindo o folclorista do romancista, este do poeta e o poeta do militante da cultura, o fundador da Práxis também deixa claro que não é correto dissecar um texto isolado de sua lavra – seja um ensaio, seja um poema -, sem ter em mente de que ele faz parte de um universo maior, de um combate que se prolonga ao longo do tempo e se trava num espaço tão amplo quanto possa ser a espaçosa galáxia dos signos verbais.

A palavra inscrita é uma coletânea de ensaios, artigos para a imprensa, conferências e entrevistas de perguntas e respostas, textos nos quais o autor se revela por inteiro e de forma profunda, escrevendo e falando sobre um tema que domina como poucos: a palavra, não apenas a oral ou a escrita, manifestações superficiais, mas sobretudo a “inscrita”, como indica o título. A abordagem do autor é semelhante á leitura de um palimpsesto – termo grego que traduz a superposição em camadas de um texto sobre outro nos pergaminhos medievais – o que permite a revelação de textos ocultos que persistem apesar da superposição do que se faz revelar. Mário recusa, seja como poeta, seja como prosador, seja como ensaísta, a condição menor de manipulador do signo verbal: ele se propõe a flagrá-lo em movimento ou em pleno processo de expansão.

Renovação na revisita – Numa das entrevistas anexadas ao livro, o poeta reivindica a condição de renovador de si próprio. Ou seja, cada nova obra sua é uma visão original e instigante dos processos de composição que ele mesmo havia desenvolvido nas obras pregressas. Essa declaração, é em si mesma, uma profissão de fé e uma definição exata de tudo quanto ele vem fazendo desde que, há 42 anos, patrocinou a instauração práxis, recuperando com Lavra lavra o verso desestruturado pelos modernistas em 22, venerado pela geração de 45 e decomposto pela vanguarda concretista, da qual ele foi contemporâneo. E fazendo mais que isso, ao enfrentar a tendência de parte da crítica (seguindo a voga estruturalista) e da poesia brasileira pós-cabralina de petrificar e totemizar a palavra, como se ela fosse um objeto em si, quem sabe  o “seixo” descrito no poema de Francis Ponge que, à guisa de ilustração de um ensaio sobre o poeta francês, é reproduzido em anexo neste seu livro novo.

Da mesma forma como propõe uma nova leitura unificadora da obra plural de seu xará no ensaio que abre o livro, o ensaísta de A palavra inscrita revela a fluidez do mel de engenho que há por trás do rigor formal de seu colega pernambucano João Cabral de Melo Neto: chama ele a atenção do leitor para um aspecto que passou despercebido de praticamente todos os seus exegetas, alguns dos quais tidos e havidos como sacerdotes supremos da análise literária no Brasil. Sob a rigidez mineral da precisão formal do texto aparente do poeta que se destacou entre todos os seus pares na segunda metade do século 20, não apenas no Brasil, mas também no mundo inteiro, Chamie resgata subtextos tão ou mais importantes que essa característica apontada em uníssono como não apenas a mais importante, mas praticamente a única.

Sertão, mar e mel - É instigante a forma como ele delata as lacunas na leitura crítica da obra cabralina, ao perseguir nela a extensão do mar nas dunas, das dunas no canavial e, por fim, do mar de cana no relevo topográfico ondular do semi-árido. Chamie revela ao leitor os subtextos fluidos do palimpsesto poético de Cabral, mostrando que sob a dialética mítica e mística do sertão/mar subsiste uma síntese fractal, que faz justiça à enorme capacidade plástica do poeta por excelência da paisagem, que foi o mestre recifense. A palavra no universo cabralino – ele mostra ao ler, ao comentar e ao puxar o leitor pela mão para lhe mostrar com clareza, citando e recitando exemplos convincentes – não é imóvel nem, muito menos, imutável. Nessa visão nova, sedutora e revolucionária do autor, João Cabral, conterrâneo do gênio da raça Gilberto Freyre - que Chamie coloca no panteão que lhe é devido -, produz debaixo do texto mineral revelado na superfície camadas de poesia fluida como o mel de engenho, metáfora que percorre outros veios e sulcos abertos ao longo do livro aqui comentado. A indefinição física do subproduto da cana moída também é lembrada na leitura crítica do autor da crítica feita por Lévi-Strauss a nossos Tristes trópicos , a respeito da qual este texto se refere logo abaixo.

Antes disso, convém chamar a atenção do leitor interessado pela inversão proposta pelo atento leitor de João Cabral, que Chamie sempre foi e continua sendo: a contestação da imobilidade pela fixação do conceito oposto, o da “poesia peregrina”. Para apoiar seu comentário de que o veio poético cabralino segue o curso dos rios que lhe servem de tema – ele,  que é por excelência o cantor do Capibaribe e do Beberibe -, Chamie recorre em mais de um ensaio a uma citação convincente: “Para os bichos e rios / nascer já é caminhar”. Frutos de um estro poético genial, esses dois versos sugerem o movimento que explicitam e vão além, parafraseando a secular constatação filosófica de Heráclito de Éfeso, para quem ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio.

Preconceito versus conhecimento – A descoberta de ângulos novos na leitura crítica de uma poesia dissecada até os ossos como é a de João Cabral revela a erudição e a inteligência de quem a faz, mas também não deixa de denunciar seu gosto pela oposição e pela polêmica. Ao jovem colega Rodrigo Petrônio, em entrevista, Mário revela que sempre fez questão de enfrentar os consensos. E o fez sem medo em sua luta quase fratricida contra os irmãos Campos como continua a fazê-lo ao enfrentar o establishment acadêmico “uspiano” ao examinar criticamente a obra de um de seus mitos fundadores, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e defender uma das vítimas mais notórias de sua patrulha ideológica, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.

O analista agudo que não teme polêmicas promove a demolição do mito dos Tristes trópicos usando a arma favorita daqueles que o adotam com a mesma convicção com que detestam o autor de Casa Grande & Senzala . Baseando-se no relato do próprio antropólogo, Chamie desnuda seu método eurocêntrico e branco de interpretar a realidade desconhecida do trópico que visitou e tentou, em vão, entender e, o que é pior, consertar. A visão preconceituosa, racista até, de Lévi-Straus pode muito bem ser qualificada como “colonialista” no sentido dado pelo ensaísta, ao contrapor os métodos coloniais da Europa anglo-saxã, contrapostos à colonização da miscigenação promovida pelos portugueses e registrada na obra de Freyre, tal como o relata Chamie. O método “científico” de elaborar um sistema e, depois, ir a campo ver como a realidade pode confirmá-lo é usado até hoje por cientistas sociais brasileiros, muitos dos quais formados na USP, que o francês ajudou a criar. Estes tratam Chamie como um inimigo a ser combatido e este não costuma deixar desaforo sem resposta. Daí, a notória (e, por que não dizer, estúpida) cortina de silêncio que se abate sobre seu discurso crítico e, sobretudo, sua obra poética numa academia regida pela confirmação do preconceito e não pela busca do conhecimento.

“Aquele” Gilberto – Com a mesma coragem de combatente e polemista com que critica Lévi Straus e, com ele, todo o mito da superioridade da ciência branca sobre a “superstição” afro-índia, Chamie faz justiça ao trabalho luminoso de Gilberto Freyre. Cita um estudo do inatacável Antonio Candido de Mello e Souza e, como convém quando se cita um totem da crítica acadêmica nacional, lhe presta todas as homenagens em adjetivos. Mas lembra que o título do estudo, “Aquele Gilberto”, revela por si só a posição dúbia da intelligentsia “uspiana” sobre o mais importante sociólogo brasileiro de todos os tempos. O “aquele” define com clareza os dois Gilbertos, tal como o cientista social pernambucano foi tratado pela USP: o fundador da Nova Sociologia brasileira com Casa Grande & Senzala , respeitado no mundo temperado e, por isso também, aceito aqui nos trópicos, e o “conservador” atacado como se fosse (o que não era) cúmplice da tirania militar sob cuja égide o Brasil viveu em sua velhice. O estudo de Chamie é exemplar, por expor os defeitos e vícios da crítica estruturalista-marxista ao mestre de Apipucos – fraquezas de natureza teórica e de mera vilania pessoal – que em nada diminuem a importância da obra do mestre, mas apenas revelam a escala liliputiana de seus detratores.

Além do material acima citado, a coletânea de textos publicada no novo livro propõe uma forma de interpretar o texto de Euclides da Cunha como uma obra de arte em si mesma e não como um veículo panfletário de um pensamento científico a que se tem tentado reduzi-lo. Inclui ainda estudos – todos eles no mínimo provocativos – da obra do poeta negro simbolista Cruz e Souza e até de um opúsculo de Betty Milan sobre o amor, julgado sob o prisma de um clássico antigo do cancioneiro brega nacional, Coração materno, de Vicente Celestino, regravado por Caetano Veloso na época tropicalista. Aliás, a MPB é abordada num ensaio sobre a influência da Instauração práxis nas letras de Chico Buarque, Gilberto Gil e do citado Caetano Veloso. Há também uma palestra sobre a literatura brasileira neste século 21 e um verbete sobre danças populares escrito para um dicionário da lusofonia, que está sendo preparado em Portugal.

E há, por fim, um ensaio interessantíssimo  sobre o maior prosador brasileiro de todos os tempos – “Machado na sua” –, que dá bem uma idéia da verve e da atenção do leitor que o escreveu: ele parte de uma citação do autor de Dom Casmurro que poderia ser usada pelos jovens de Ipanema nos anos 60 - “Eu ainda estou na minha: acho que foi a nostalgia da lama”. Essa sentença dá bem uma idéia do espírito do autor e de sua obra: a curiosidade instigante e polêmica a serviço da restauração da verdade histórica escondida nos palimpsestos canônicos das igrejinhas no comando da academia excludente.


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