"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/5/2008
(próxima coluna: 9/6)

Unofamília – Breve história de amor

  A mãe meditosentada na cadeira. Nua. O pai mongevestido, servindo saladas.

– Limão, querida?
– Não, em homenagem ao Alfredo que não gostava de limão.

Comem à cabeceira da mesa. O pai acaricia a testacadáver do filho.

– Por que a morte gela a carne querida? A batata não cozinhou o suficiente, desculpe querida.
– Por que será que o matamos? Não haveria outra solução. Ele está bonito, me passa o alface, parece tão tenro.
–Quem? Alfredo ou o alface?
–Os dois. E se os comêssemos?
–Somos vegetarianos, querida, não podemos comer carne. Princípios são princípios.
–O que vamos fazer, será que não vão perguntar por ele?

O pai passa a lavar os pratos.

– Creio que não querida, Alfredo não era um homem que despertasse perguntas, todos só lembravam dele quando o viam, não o vendo, não haverá perguntas.

– E os restos deste corpo, o que faremos? A carne logo desaparecerá, mas e os ossos, se pelo menos o Rex tivesse por aqui.
– Se Rex tivesse vivo, Alfredo estaria vivo, querida.

A mãomãe alisa a nudezmorte de Alfredo.

– Meu filho, matá-lo foi um bem, aquele seu ato, aquele ensopado. Era o Rex, Alfredo, o cão, a reencarnação de nosso mestre Chenrezig, comê-lo ensopado! E pior, exigir que comêssemos também, Alfredo!

A mãe sexosenta-se sobre o corpo do filho. O pai dedotoca-se. Olham-se amorosos.

– Isso, querida, convença-se, acredite, ele estava descontrolado. Apontou-nos uma arma. Não tivemos escolha.

E gozamvivem a noite toda. Ora a mãe, ora o pai voampesam sobre a pélvis gélida de Alfredo.

Amanhecem entre restos de cenouralface.

A mãe num sustogrito:

– O que você fez com Alfredo?

O pai olhacorda-se. Desespera-se. Alfredo não está.

– Como pode, querida. Ele estava aqui, amamos Alfredo a noite toda, quando cansamos, dormimos aqui. O que aconteceu?

A porta se abre. Alfredo vemfeliz da cozinha.

– Mãe, Pai, fiz o desjejum para vocês, em agradecimento por terem me trazido de volta. Foi o amor carnal de vocês que me fez retornar à vida.

Pai e mãe mantrajoelhados, em transe de adoração. Alfredo prepara a mesa. Pratos. Talheres.

– Sentem-se meus amores, preparem-se para o banquete. Vocês precisam de muita proteína para me amar todas as noites. Só assim continuarei vivo.

E Alfredo trouxe de entrada, peludopatinhas assadas. Após, pratoprincipal, um ensopado agridoce com a parte mais nobre da reencarnação de Chenrezig.


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