JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 19/7
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Cartas marcadas no jogo sujo da política

                   Quando não há dúvida do crime, o político flagrado recorre à renúncia

O episódio da repartição do cheque de R$ 2,2 milhões num galpão, do grampo telefônico que permitiu à polícia tomar conhecimento dela e da posterior denúncia que levou o senador Joaquim Roriz (PMDB-DF) a renunciar ao mandato para manter incólumes seus direitos políticos é muitas vezes sintomático. Ele revela vários pecados dos sistemas eleitoral e político brasileiros que, na prática, se tornaram impasses.

O primeiro nem é tão antigo: a garantia da impunidade liberou os homens públicos brasileiros da cautela que as raposas felpudas de antanho tinham em relação às conversas por telefone. O pessedista mineiro Tancredo Neves, por exemplo, não entendia a loquacidade ao telefone de alguns correligionários, como o democrata-cristão Franco Montoro, e reclamava: “Pelo telefone, dependendo do interlocutor, não se deve nem dar as horas”. Hoje em dia, fala-se tanto e com tal sinceridade em aparelhos muito mais fáceis de ser devassados que os telefones pretos e feios de antigamente que é possível dizer que basta instalar um “grampo” para se pilhar um deslize de seu alvo.

A Operação Aquarela, que pilhou a partilha do cheque de Roriz, é apenas mais uma das muitas investigações da Polícia Federal resultantes de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Mas os neoimpunes têm tanta certeza de que nunca serão punidos de fato pelos delitos eventualmente cometidos e comentados ao telefone que nem se preocupam em tomar cuidado para evitarem ser pilhados novamente. Preferem contratar advogados para reclamar das arbitrariedades policiais e defender uma nova lei que reduza as oportunidades de os policiais xeretas escutarem seus telefonemas.

A desculpa que o senador flagrado encontrou para justificar o acesso à vultosa quantia foi de um absurdo que chega a ser infantil. Nem seus colegas – de hábito propensos a acreditar em histórias de carochinha, como esse surto pecuário que acomete o Parlamento brasileiro na atual legislatura – a consideraram convincente. A história contada por Roriz era tão indecorosamente inverossímil que, numa inusitada vênia à verdade, os senadores preferiram, desta vez, esquecer a supremacia da versão sobre os fatos. Isso não impediu, contudo, que lhe fosse permitida a benesse da renúncia. Num ambiente em que nem sempre os cidadãos comuns, os milhões de sem-mandato, têm direito ao benefício da dúvida, os mandatários do Legislativo no Brasil reivindicam permanentemente este guarda-chuva ancestral do Direito romano: “Na dúvida, a favor do réu.” E, quando fica claro que dúvida nenhuma mais há, os eleitos ainda podem renunciar para escapar aos rigores da lei. Note-se que a palavra eleitos aqui usada não significa necessariamente aqueles que foram escolhidos pelos eleitores, mas os que conquistaram o privilégio da simpatia dos próprios pares. A um par de Roriz, Fernando Collor, por exemplo, esse benefício foi negado no Parlamento, que não lhe tinha apreço. Mas esta é uma exceção, não a norma.

O normal é o que ocorreu com ACM, Jader Barbalho e muitos outros antecessores de Roriz. Diante da perspectiva do cadafalso, o condenado pede licença ao carrasco e sai de fininho. O episódio aqui comentado teve algumas agravantes e elas não se limitam ao semblante sorridente do protagonista do escândalo, reproduzido na primeira página deste jornal. Foi noticiado – e ninguém notou – que lhe foi dado tempo para negociar a renúncia coletiva dos suplentes para que, seguindo a lei, fosse convocada nova eleição e, aí, ele pudesse voltar, redimido pelo voto popular, ao mesmo lugar, mas em mandato diferente. Este não é um pormenor, mas um detalhe aspecto importante: ao contrário dos cidadãos comuns, que em teoria devem ser punidos por qualquer crime sem importar o ofício que exercem, os mandatários do Legislativo estão fora do alfanje da lei se o delito de que forem acusados tiver sido praticado fora do mandato exercido. O princípio legal absurdo vale para a possível recondução de Roriz ao Senado e também para o mandato de seu primeiro suplente, Gim Argello (PTB-DF), réu na mesma Operação Aquarela que compromete o titular da cadeira.

A notícia desses eventos coincide com o sepultamento sem pompas da reforma política, que já foi a mãe de todas as reformas, mas não passou no governo anterior, do tucano Fernando Henrique, e também não parece ter chance de ser aprovada agora, sob a égide do petista Luiz Inácio Lula da Silva. A proposta de Ronaldo Caiado (DEM-GO) é um golpe à feição do autor, propondo transferir do eleitor para o dirigente partidário a escolha do parlamentar. Infelizmente, contudo, a derrota da idéia não consagra o poder do representado sobre seu representante no Congresso, mas, sim, o instinto de sobrevivência deste, à revelia do outro. Não se trata de um tiro na tentativa de entregar aos oligarcas partidários definitivamente a soberania popular, mas de uma punhalada em qualquer tentativa de mudar um statu quo que favorece o parlamentar e o distancia da fonte do poder numa democracia: o cidadão que o elegeu. A reforma política é um objetivo inalcançável pelo simples fato de que quem pode promovê-la está muito feliz no establishment e acha melhor que nada mude, pois, na política como no futebol, em time que está ganhando não se deve mexer.

Joaquim Roriz é dos que sempre ganham. Basta contabilizar os escândalos que protagonizou e comparar com os votos que recebeu depois deles. Ele é um dos beneficiários do quadro no centro do qual está o nó górdio, que não há espada que decepe, da corda em que o povo se enforca no próprio imobilismo na forca do comodismo dos dignitários republicanos, que não têm por que mudar as regras de um jogo sujo de cartas marcadas em que se sabe de antemão que alguns ganham e a grande maioria só perde sempre.


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