"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/8/2008
(próxima coluna: 26/8)

De corpo e alma

Em 2005, Regina Casé, numa série de reportagens para o Fantástico intitulada “Mercadão do Sucesso”, acompanhou alguns artistas populares que, à margem da mídia estabelecida no eixo Rio-São Paulo, conseguem arrastar multidões para shows, além de terem uma expressiva vendagem de discos. O programa foi ótimo. Toda aquela presença de espírito de Regina humanizou alguns tipos bem excêntricos.
Depois disso, os programas populares de televisão encheram as tardes de domingo com esses conjuntos e bandas. O que era um fenômeno da periferia cultural brasileira foi assimilado pelo sistema e disseminado para todas as outras regiões. O melhor exemplo disso é a banda Calypso. Não raro, podemos ver aqui em Santa Catarina uma garotinha com um daqueles sobrenomes germânicos impronunciáveis dominando a coreografia rebolante da cantora Joelma.
Por força da tradição familiar, e por vontade mesmo, às vezes incorporo uma Regina Casé e invado este universo musical alijado da mídia e, principalmente, do bom gosto musical dos bem pensantes. Trata-se de um mundo paralelo à cultura dita séria. Para entender a dinâmica deste mundo é necessário esquecer conceitos pré-estabelecidos do que seja bom ou ruim artisticamente.
Aqui na região Sul uma das bandas mais longevas e de maior sucesso é a Corpo e Alma. Eles são over, como convém a toda banda popular. Roupas estilizadas, cabelos estranhos e uma música capaz de por um salão abaixo, durante mais de cinco horas. As músicas são aceleradas, algumas letras são tão absurdas que chegam às raias do nonsense. No site da banda podemos ver que ele se auto-denominam “A Banda Katchaquera”, seja lá o que isso quer dizer. Sei apenas que katchaquera é parte do refrão de uma destas musiquinhas chicletes que ficam martelando por horas: “Katchaquera, Katchaquera, rainha da noite, deusa do amor, bailando Katchaca te entreguei meu coração.”
A banda arrasta uma multidão de tipos bem cinematográficos, almodovarianos mesmo. As mulheres exuberam-se nos decotes, botas, minissaias. Muito brilho e maquiagem. No último baile que fui com Corpo e Alma havia uma moça como que possuída na frente da caixa de som. Ela dançava sozinha, música após música aquela mulher transcendia. Interessante ver também os casais que já passaram dos quarenta dançando feito adolescentes apaixonados.
Num baile popular feito pelo Corpo e Alma e por bandas semelhantes há sempre uma sensualidade explícita. De dia, provavelmente, os freqüentadores são recatadas empregadas domésticas, operárias, mecânicos, borracheiros. Gente anônima que sustenta o País e que num sábado à noite extravasa tudo num baile.
Não estou falando de bom gosto, de requinte musical e artístico. Falo de liberdade, da alegria simples e descompromissada da gente do povo. A verdadeira cara do Brasil.


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