1ª quinzena de junho de 2008 - Coluna 109
(Próxima coluna: 18/06)
Hábito Condicionado
De novo a mesma história de sempre: ouvir o alerta, correr, fechar portas e janelas, deitar no chão, rezar e esperar. O rosário debaixo do tapete, aguardando as horas de desespero: ajudava, dava alento. Rezar fazia com que o tempo passasse mais depressa. Às vezes até sonhava, esquecia o que estava fazendo, perdia a conta nas contas da Ave Maria e do Padre Nosso Senhor, meu Deus, que desespero, isso nunca vai acabar?
Um dia acabou. Mas já estava condicionada. Qualquer sirene e... Pronto: correr, fechar portas e janelas, deitar no chão, rezar e esperar. Agarrava o terço sob o tapete e só na hora em que acabavam as contas é que se dava conta que aquela agonia já tinha acabado. Não, não havia mais guerra! Não havia mais perigo de bombas, nem aviões sobrevoando a casa na rua semi-destruída.
Viciou-se naquele ritual da hora do desepero. Não conseguia se desligar daquele verdadeiro vício. Moça beata, carregava sempre um terço na bolsa pra qualquer emergência.
Os anos se passaram e a rotina continuava. Não tinha jeito de desligar aquele botão automático. Não havia emprego que servisse, escola que a segurasse na cadeira, pois o condicionamento impedia qualquer relação normal de trabalho ou estudo. Resolveu fazer artesanato. E até que dava pra se virar bem com o que ganhava. Trabalhando em casa, mais fácil passar por "normal". Ia à missa, vez em quando. Os fiéis nem estranhavam aquela correria pra dentro do confessionário, enrolada na cortina, caída no chão, rosário na mão, olhinho fechado, rezando sem parar. Uma cutucadinha, um Hino Sacro, e, aos poucos, voltava ao normal. No bairro era conhecida: a beata da sirene. Dava vexame, mas aprendeu a freqüentar apenas lugar conhecido, onde todos sabiam do problema. Tratamento? Fez de tudo: tentou padre, psicólogo, benzedeira, psiquiatra, cerveja, calmante, chá de alecrim, Prozac e até exorcismo em Igreja de dízimo no bolso alheio. Na mesma.
No Banco, certa feita, assustou todo mundo: pensaram que fosse assalto. Veio até televisão. E aquela doida se debatendo no chão, terço na mão, respondendo ao repórter um Salve Rainha.
Namorar? Nem pensar! E se a sirene tocasse na hora "H"? Uma vez aconteceu e foi um vexame. Toda arrumada: pronta pro crime. Virgem ainda, a coitada, Balzac nenhum ia segurar aquele fogo consumidor, aquela tara contida. Conheceu o moço na padaria. Graças a Deus, nenhum incêndio, acidente ou roubo, que justificasse aquele ato condicionado e psicótico e causasse o afastamento precipitado da nova conquista. Conversaram, tomaram café no balcão, ela deu o número do telefone. Três dias de baba telefônica, lambição de doce pela voz. A cadeira chegou a ficar úmida. Ela não sabia direito o que era, mas desconfiava. Lembrava-se de ficar assim antes da guerra, antes do terço, antes da romaria, antes da confissão com Padre Antônio que a condenara ao fogo dos infernos por pensar bobagens. Duas horas de reza e ainda se sentia suja por dentro. Padre danado, esse, quase acaba de vez com a comichão à flor da pele daquela filha de Maria. Guardou-se até ali, mas... À beira dos trinta e muitos anos, e ainda virgem? Valha-me Deus! Eu quero é mais!
Marcaram na porta da casa dela. Tensa, retesada de terror, só de pensar em ouvir sirene pelo caminho. Já tinha dito ao moço quão tímida era pessoalmente, que tinha vergonha até de falar, ficava nervosa. Que ele não reparasse em sua falta de assunto. Soltou os cabelos pra que ele não percebesse os tapa-ouvidos. Isso mesmo: TAPA OUVIDOS. Por via das dúvidas e por força do hábito, o terço na bolsa. Um beijinho no rosto, pediu pra ele ligar o rádio e ficou fazendo cara de mocinha tímida, treinando um olhar de apaixonada, pro pretendente não puxar assunto. E o moço achando que estava agradando, gostou da atitude e do olhar abestalhado da pobre. Passaram por umas duas ou três sirenes e ela... Nada! Chegou até a ver as luzes, a ambulância, o carro de bombeiros, a viatura da polícia, e nem se abalou, embora o coração estivesse acelerado com a visão do perigo. Ele, adorando aquela flor, a expressão de cúmplice de atos vindouros de fome e tara, de fogo e maremoto. Já imaginando que na cama aquilo devia ser um vulcão. Foram a um barzinho próximo à represa, lugar retirado da cidade. Sugestão dela, dica da manicura que sabia de tudo, namorava todos, topava qualquer parada. Ela pediu licença, foi ao banheiro e arrancou aquilo do ouvido. Um drinque aqui, outra bebidinha ali, um beijo cá, uma lambidinha no ouvido, um fogo acolá e... Vamos pro Motel? O sangue ferveu... Ah, ferveu, sim! Tinha um elevador disparado no trajeto vulva-garganta que não parava. Sentiu aquele molhado de novo. Sabia que era pecado, mas ela queria era mais. Mais vida pra monotonia de estrebuchação e rezação de sirene. Topou, claro, depois de fazer pose de moça-véia-virgem e contar segredinhos que indicassem tal situação. Ele não acreditou, mas fingiu que sim. Novamente uma ida ao banheiro e recolocou os tapa-ouvidos. Tudo bem no caminho, na portaria. Outro jeitinho no banheiro e se livrou daquilo. Pensou: aqui dentro é que não vai ter pânico. Sirene, aqui? Nem pensar. Ria por dentro, da vitória até ali.
E começou o enrosco e rola: amassos daqui, beijos dali, tira uma peça, tira duas, tira tudo. Nua! Nuazinha em pelo! Fechou os olhos de vergonha; tremia mais que gelatina mole. Tinha medo, tinha arrependimentos religiosos, mas também tinha curiosidade e um fogo lhe comendo as entranhas. E se ficasse grávida? Lembrou-se da camisinha. Levantou, pegou a bolsa e mostrou os envelopinhos, mais vermelha que um morango maduro. Ele estendeu a mão e pegou a grande. Ai, meu Deus: grande! Valei-me, Senhor Jesus, que meu pecado é dos enormes!
O cara na maior desenvoltura, acomodou o preservativo. Ela em pé, olhar atônito. Não sabia o que fazer. Ele pediu calma, chamou-a pra cama, acomodou-a no papai e mamãe pra não assustar a moça que tinha os olhos mais arregalados do mundo, parecia sopa cremosa gelada. E foi indo devagarinho, sem pressa. Quando ia se encaixar, acomodar o membro nas pernas abertas da donzela... Incêncio no Motel! Valei-me, São Cristóvão, que essa mulher é doida! E agora? O que fazer com essa desatinada nuazinha em pêlo estrebuchada no chão? Ele tentou de tudo: abraçou, falou baixinho, até rezou, e ela naquela falação de Ave Maria, Credo em Cruz, Jesus me salve! Vestiu-se apressadamente, enrolou a pobre no lençol e carregou-a pra fora do quarto. Um corre-corre danado, pátio congestionado e a maluca naquele escândalo maior que a sirene de incêndio. Do outro lado do pátio, um salão pra onde todos foram levados. Executivos casados ofereciam dinheiro pra ir embora, todo tipo de suborno pra sair antes da chegada da polícia que devia fazer a ocorrência, e o pobre lá, em pânico, sentado no chão ao lado daquela descontrolada deitada, se debatendo, segurando o terço e rezando.
Passado o susto, início de incêndio controlado, concluíram que algum usuário desavisado jogou um cigarro ainda aceso no cesto de lixo do banheiro. Nada sério, tudo sob controle, todos liberados, menos o casal inusitado. A pobre foi direto pro sanatório, enrolada no lençol, e o galã respondeu inquérito policial por atentar contra uma pobre beata virgem e enlouquecê-la. Perdeu emprego, mulher e filhos, vive à míngua, na fila da sopa e do banho de domingo na Igreja Matriz, reconstruída após a guerra.
Depois de tratada e quase sã, ela resolveu ser freira. Vive praticamente em clausura, durante a semana, pois o convento fica ao lado da delegacia e do Hospital Geral. Na fila da fome ninguém liga pra freira maluca que reza sem parar, terço enrolado nas mãos. Na vez dele, beija suas mãos e chora, corrigindo o sal da sopa.