As chaves
Olho para meu molho de chaves e tento me ver nele. É possível resumir um homem pelas chaves que carrega? As minhas chaves estão aqui ao meu lado. Tento decifrá-las. A primeira me tranca nesta casa. Espaço de solidão, de liberdade. Aqui habito junto com minhas vontades, alegrias, desesperos. Livros, roupas, restos de comida. Aquela desordem constante dos que moram sozinhos, dos que não têm espaços em comum com os demais, tanto que só tenho uma chave para entrar na casa. Todas as outras portas estão abertas, convidativamente abertas. Esta é a chave que consigo identificar no escuro. Sua textura é mais gasta, mais polida do que as outras. A casa é o lugar em que mais entrei e saí, mesmo sendo um espaço temporário, pois o locatário pode não querer renovar o contrato do aluguel, e eu posso não querer mais morar aqui. A vida pode se movimentar (quase sempre se movimenta) à minha revelia e tudo pode mudar outra vez.
Depois vêm as chaves do trabalho. Duas para a grade e porta da frente. Duas para a grade e porta lateral. Grades e portas. Segurança em tempos de guerra. Chaves pesadas, donas de um mundo que não me pertence, mesmo que eu faça parte dele há tanto tempo. As chaves do trabalho, da burocracia, as chaves da confiança que os patrões depositam em mim. Chaves que solidificam minha honra de homem trabalhador, honesto. Cidadão de bem, cumpridor dos deveres. As chaves do trabalho, da responsabilidade que carrego por abrir e fechar a empresa.
Dentro desse mundo que não é meu, apesar de possuir as chaves, existe um pequeno espaço de pessoalidade, o armário: aquele espaço de metal em que dia a dia deposito o que sou ali dentro e vou trabalhar limpo e organizado. Também esse espaço será devolvido caso eu saia desse emprego. Também esse espaço não me pertence completamente, apesar da aparência com que possuo suas chaves.
Outras chaves são as dos cadeados: bicicleta, motocicleta. Artifícios que aparentam segurança. Tempos de guerra também para os meus parcos bens pessoais. É preciso cuidar deles, dificultar um pouco a vida dos ladrões. Nunca me roubaram nada, mas mesmo assim tranco as rodas que me carregam por aí. Novamente a ilusão é a melhor segurança. Se quiserem, roubam tudo, inclusive os cadeados. E nada posso fazer.
Carrego também uma chave diferente, chamada "controle remoto". Basta apertar e o portão abre e fecha automaticamente. O portão se tornou um escravo da minha preguiça. Claro que, aos olhos da aparência, esta chave alienígena está ali em nome da comodidade. Claro que abrir um portão à distância nos confere um poder, ínfimo, mas o poder de sermos naqueles segundos míticos Ali Babás, senhores capazes de abrir a porta da caverna.
Tenho duas chaves que desconheço o uso. Não lembro onde usei ou porque as carrego. Não jogo fora por medo. Talvez fique preso e necessite justo destas chaves. Mas isso é bobagem. A vida não pode ser destrancada por chaves. É preciso um pouco mais. Coragem, talvez, para arrombar as fechaduras definitivamente.
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