JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
Colunas de 23/8
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Julgamento Histórico
O STF decidirá se o voto dá aos eleitos o poder de perdoar as falhas de amigos
A Justiça, diz-se, tarda, mas não falha. Os procuradores federais do Distrito Federal levaram dois anos e meio para requerer à Justiça a punição de figurões do governo Lula e ex-dirigentes do partido do presidente, o PT, acusados de comprar a adesão de parlamentares da base de apoio para projetos de interesse oficial. Mas, afinal, o fizeram e pediram, no começo desta semana, a abertura de cinco ações de improbidade administrativa contra 37 dentre os tidos como beneficiários do tal “mensalão” – termo impróprio pelo qual se tornou conhecido o esquema. Antecipando-os, aliás, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, já havia oferecido denúncia contra 40 ditos “mensaleiros” e esta vai ser julgada a partir de hoje pelo Supremo Tribunal Federal.
Da delação do ex-amigo Roberto Jefferson, então presidente nacional do PTB, partido da base aliada, até hoje muita água passou por baixo da ponte e, segundo dizia Heráclito de Éfeso, nunca ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas, embora tenha ido ao mesmo rio. Da cabeça raspada do publicitário Marcos Valério, acusado pelo delator de principal operador do indigitado método, brotaram cabelos encanecidos, mas nunca pelas preocupações com a vida, pois ela segue mansa como dantes: este jornal revelou, domingo, que ele se tornou um próspero fazendeiro em sua Minas natal.
Não se pode dizer também que o professor de Matemática que virou tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tenha muitas queixas do destino, mesmo tendo sido o único punido por seu partido. Não mais é visto pelos corredores do Planalto, como nos tempos em que passava cigarrilhas acesas por debaixo da mesa para o padrinho presidente. Mas é tratado como celebridade em sua terra natal, Buriti Alegre (GO), onde no domingo 12 de agosto subiu no palanque montado para receber o governador goiano, Alcides Rodrigues Filho (PP), depois de fazer parte da comitiva que o recepcionara no aeroporto.
Silvinho Pereira, célebre pelo jipão Land Rover de R$ 79 mil que lhe foi presenteado por uma fornecedora da Petrobrás, foi afastado da secretaria-geral do PT, mas hoje circula num Toyota Fielder, um pouquinho mais barato (de R$ 65 mil), só que, pelo menos, pago com o suor do próprio rosto: residente em Ilhabela, ele administra uma empresa de eventos, que tem a mesma estatal em sua carteira de clientes, e constrói uma pousada.
O ex-guerrilheiro José Genoino, flagrado por uma câmera de elevador ao lado do irmão, o deputado estadual cearense José Nobre Guimarães, antes de um assessor deste ser pilhado pela polícia com dólares escondidos na cueca, no Aeroporto de Congonhas, elegeu-se deputado federal. À época das acusações, explicou sua assinatura de presidente nacional do PT como um descuido de boa-fé de companheiro. Os brasileiros, que vivem sob a égide de leis de cuja redação participa, podem fazer pouco além de rezar e torcer para que ele tenha mais atenção ao escrevê-las.
Do lote de absolvidos pelos magnânimos companheiros deputados e perdoados pela majestática generosidade do chefe do governo, o Professor Luizinho não conseguiu repetir a proeza de Genoino, mas promete começar tudo de novo, e de baixo, como vereador em Santo André. Esta cidade do Grande ABC ganhou notoriedade política e criminal depois do seqüestro e assassínio do prefeito petista Celso Daniel.
Entre os raros punidos pelos colegas deputados, destacam-se dois. O acusador, Roberto Jefferson, voltou às origens de criminalista, com o mesmo talento que o levou, primeiro, ao Povo na TV e, depois, à tribuna da Câmara dos Deputados, de onde defendeu a permanência de Fernando Collor na Presidência da República e exigiu a saída de José Dirceu da Casa Civil. Embora dispondo de um único cliente, acusado de homicídio, não consta que Jefferson tenha sofrido uma redução de patrimônio pessoal que lhe tire a paz e o sono.
O mesmo pode ser dito do protagonista do escândalo, José Dirceu, que, embora tendo perdido o poder formal com a demissão da Casa Civil e a cassação do mandato e a perda dos direitos políticos pela Câmara, não parece contar com menos força informal. O moço de Passa Quatro, que se celebrizou como combatente contra a ditadura menos pelo sangue que nunca fez jorrar em conflitos com a repressão e mais pelo que ensopou a camisa do colega morto por ele hasteada como uma bandeira numa passeata estudantil, é um self made man de fazer inveja a Sebastião Camargo, da Camargo Corrêa, e Rolim Amaro, da TAM. Os meios de comunicação, que ele acusa de “partidários” em entrevista à Playboy que está nas bancas, continuam a lhe dar importância, como fica comprovado pela referida entrevista.
Dirceu é o símbolo do que passará a ser julgado na maratona de três sessões do STF, a partir de hoje: ele representa como poucos a devoção de um grupo de profissionais da revolução ao elementar princípio religioso da unção. Este amolda o lema adotado por Artur Bernardes – “aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei” – ao princípio stalinista segundo o qual, “se o inimigo não tiver defeito, inventa-se; se o camarada não tiver defesa, perdoa-se”. Este estilo de fazer política e governar a República – expresso no acintoso perdão incondicional do PT aos próprios militantes às vésperas da sessão do STF – está agora para ser julgado. O Supremo não julgará apenas se os 40 acusados compraram de fato a adesão de parlamentares aos pleitos oficiais. Mas também decidirá se a vontade majoritária do eleitorado dá a um grupo de ungidos o poder de condenar e absolver apenas a seu bel-prazer.
Talvez não seja exagerado concluir que, além da definição do Brasil como o “país da impunidade”, se decidirá se as instituições podem evitar que alguns usufruam o fruto do suor de todos com um mero “abre-te, Sésamo”.
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