1ª quinzena de julho de 2008 - Coluna 111
(Próxima coluna: 18/07)
À SOMBRA DE UM FLAMBOYANT
I
Uma cortina de silêncio vedava a visão do flamboyant no meio do jardim, fazendo sombra ao velho banco de madeira, pelos séculos, petrificado. E era bom ficar olhando aquela árvore imensa se estendendo sobre a grama, sobre o banco, sobre um pedaço do gramado e uma rocha recoberta de musgo e limo. Um descanso para as vistas em dias de sol ardido, de calor mormacento, de preguiça até de ler.
Cândida se espreguiçou na cadeira de balanço, entre a dúvida de levantar e abrir a cortina ou deixar-se levar pelo sono da sesta e apenas imaginar cenário tão belo.
Felipe sentara-se ao piano, fez pose e estalou os dedos, anunciando uma sessão musical para impressioná-la ou adormecê-la – dependendo da música. Quando ela avistou o grande livro de partituras em tons de azul pastel, mudou-se para o canapé, acomodou a cabeça na almofada de veludo vermelho com franjas douradas e ensaiou um cochilo de gato. O próprio gato sentiu-se invejoso de tal desfaçatez em imitá-lo e aperfeiçoar seus gestos.
Nhá Maria trouxe um licor digestivo. " Nhá Maria e seus licores!"– pensou Cândida, esboçando a suavidade do gesto de estender a mão e sustentar delicadamente o cálice entre seus longos e alvos dedos. Sorveu seu conteúdo e deixou-se cair languidamente, permitindo que o delicado frasco de cristal escorregasse, rapidamente salvo pela destreza da mucama.
Felipe finalmente começara seu recital de valsas e melodias suaves, doces e amorosas, como que anunciando uma declaração de amor à prima Cândida, sempre tão meiga, tão falsamente interessada em tudo e tão suavemente distante do mundo. Para ele, Cândida assemelhava-se a um anjo: um anjo etéreo, inalcançável e distante; ser vivente em outro universo, outras esferas mentais, outros amores tão mais sublimes que seus sentimentos tão terrenos.
Cândida adormeceu entre suspiros e a respiração quase inaudível.
Felipe perdeu-se por horas em devaneios musicais.
Nhá Maria sentou-se próxima à soleira da porta da cozinha, ouvindo a música e descascando batatas para o jantar.
II
"O jantar está servido", anunciou Nhá Maria.
O cheiro que vinha da mesa farta de sabores e cores era delicioso. A mucama era cozinheira de mão cheia. Seus quitutes eram devorados primeiro com os olhos e com o olfato; depois os comensais fartavam-se até a exaustão e o inchaço abdominal característico de quem abusou delícias numa farta refeição.
Cândida já ia se sentando à mesa quando Nhá Maria, de olhos arregalados e expressão incrédula, levou-a pelas mãos a se lavar para o jantar. Contrariada, Cândida cedeu às orientações da mucama, que já tinha providenciado água e roupas limpas, estas, colocadas sobre uma enorme cama vestida de alvo linho com inicias e flores bordadas em amarelo. Cândida parecia meio fora de si, um pouco distante da realidade. Não entendeu quando aquela criança estranha e desconhecida entrou correndo no quarto, lhe abraçando e chamando-a de mamãe.
Um olhar de horror tomou conta de sua face. Correu ao espelho e quase desmaiou. Não se lembrava onde tinha guardado sua mocidade, quem tinha escondido suas tranças longas e negras, quem lhe havia impingido aquele olhar cansado na face. Correu à janela e viu o flamboyant, exuberante, talvez um pouco mais alto e mais largo, e, talvez por isso, o banco não lhe fosse mais visível. Voltou-se para Nhá Maria, a criança chorando agarrada à saia da mucama, que também chorava:
— O que aconteceu? Pelo amor de Deus, alguém me responda!
Nhá Maria acariciou suas faces, afastou-se, levando consigo, pelas mãos, a criança. Fechou a porta e trancou-a, atrás de si. Cândida jogou-se na cama e começou a chorar compulsivamente. Tinha uma nuvem de esquecimento em seu cérebro. Desesperada, começou a gritar pedindo socorro, na esperança de que alguém lhe dissesse algo que fizesse sentido. E novamente adormeceu, sobre a fronha encharcada.
III
Cândida despertou logo cedo, aos primeiros raios de sol, ainda assustada, com os cabelos molhados de suor. Felipe a olhava com ternura, sem desconfiar do motivo que a estivesse afligindo.
— Onde está Nhá Maria?
Felipe a olhava, incrédulo, o tom de voz assustado:
— Nhá Maria? – respondeu.
— Não te faça de inocente, caro Felipe. Perguntei por Nhá Maria, sim. Não vais me dizer que não a conheces! Por acaso estás louco?
— Cândida, querida, não conheço nenhuma Nhá Maria, além daquela que todos contam histórias na fazenda, que teria sido mucama de tua avó. E ela morreu muito antes de tu nasceres.
Num gesto desesperado Cândida corre em direção à janela para se certificar da presença do flamboyant, seu ponto de referência, única verdade presente em todos os acontecimentos dos quais tem memória concreta e que a ligam à uma relativa realidade. Ele está lá: impávido, exuberante, resplandecente. O banco. Onde estará o banco, que daqui não mais se vê?
Correu em sua direção e viu que, do banco, apenas alguns resquícios de madeira velha e apodrecida.
Cândida caiu aos pés da árvore, abraçou-a e gritou todo o desespero de sentir-se perdida. A partir de então, parecia muitas vezes estar vivendo em outro mundo, outra realidade, outro tempo. Nestes momentos surgia com uma linda camisola de seda e anunciava, a quem encontrasse pela frente, que naquela noite, depois do sarau poético, Felipe ia pedi-la oficialmente em casamento.