"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/10/2008
(próxima coluna: 26/10)

Olinda e José

Eu os vejo pouco. Não devia. Olinda e José compõem um destes cernes amorosos raros. São idosos. Ele padece de uma cegueira recente, ela aparenta ter saúde, apesar do olhar frágil, do andar vagaroso, talvez aprendido com ele. Neles, o pacto romântico do amor eterno parece ter se cumprido.

Talvez, neles, já não haja mais amor dentro do conceito moderno, terreno, ligeiro dos nossos dias, ou o amor tenha se cristalizado em outra essência. Alquimia mesmo. Chumbo em ouro. Vida em poesia. Tudo neles demonstra uma necessidade do ser-junto, uma simbiose que ultrapassa os limites da carne, do tempo, do cotidiano e se fixa, etérea, para além da cegueira, muito mais triste do que a que atingiu José, a cegueira vasta e agressiva dos incapazes de silenciar e olhar.

Eu os vejo pouco. Não devia. Eles reforçam meu encantamento pelo humano. Refazem o caminho de minha fé perdida. A fé que tive no próprio humano e em seu Criador. Eles amaciam os cantos, as quinas por onde passam a alma e a poesia. Talvez se os visse mais poderia amaciar-me também. Talvez pudesse salvar minha alma das topadas e dos chutes que ando dando ultimamente.

Da última vez que os vi, estavam numa igreja. Era domingo, quase chovia. Um vento frio entrava pela porta lateral. Eles vieram iluminados, lentos, quentes até, e sentaram à minha frente. Ela o guiava. Se guiava nele. Por perto, ajudando, um filho, uma neta, gente que os vê todos os dias. Acostumados, talvez até incomodados pelo sofrimento não esperado na velhice.

Sentaram-se e aguardaram começar a liturgia. Do meu distanciamento de observador e também do alto das ilusões que carrego, me pareceu que Olinda e José não sofrem, não comiseram-se diante das agruras. Ao contrário, quanto mais o mundo lhes pesa nas costas, mais parecem se elevar. Ela mais do que ele. O fato de ser mulher, de enxergar ainda, de abnegar-se mais um pouco ao marido a torna superior, imantada de uma candura inequívoca.

Lá no altar, o padre falava de renúncia, de entrega, de abandonar-se para seguir os caminhos do Cristo. Pouco ouvi, pois sentados na minha frente estavam Olinda e José. Maiores do que as palavras do padre, que a igreja recém-inaugurada, que as pompas da liturgia católica. Olinda e José, silenciosos, amorosos, oravam.

A missa acabou. Eu cumprimentei Olinda de longe, mas não tive coragem de falar com José. Sou homem fraco diante do que me comove. Não consigo naturalidade diante daquilo que me provoca o olhar, que sentencia meu futuro.

Percebi mais uma vez que a vida escorrega, areia, pelas mãos e não posso conter, não posso segurar e entender. Apenas seguir e seguir, palmilhando as possibilidades e escolhas. Passará um bom tempo até que eu veja Olinda e José outra vez. Sei que novamente terei um choque de delicadeza. Apesar do treino, meu olhar ainda desacostuma-se um pouco diante da beleza.


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