JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 20/9
(Próxima coluna 27/9)


Doce catarse, venenosa ilusão

                Mais que a ansiada transparência o voto aberto pode gerar dependência

A absolvição do presidente do Congresso e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), concedida por 40 votos secretos de seus pares e por mais 6 que se abstiveram – um dos quais, Aloizio Mercadante, abertamente –, contra 35 que preferiram puni-lo, produziu duas conseqüências funestas. Mais funestas até que a permanência do réu num posto que lhe garante o comando do Poder Legislativo e o terceiro grau na escala sucessória do presidente da República. Uma delas é a possibilidade de, impulsionados pela avalanche da justa indignação nacional, os parlamentares virem a abrir quaisquer votações de que participem, a pretexto de permitir uma transparência que pode produzir, ao contrário do que imaginam os incautos, mais dependência. A outra é uma ilusão totalitária do PT, declarada entre as resoluções de seu último encontro nacional, que não parece ter condições, felizmente, de ultrapassar o campo da mera divagação filosófica: a extinção do Senado.

A impunidade que beneficiou Sua Excelência, ao contrário do que expressou seu primeiro aliado, Luiz Inácio Lula da Silva, em Madri, é incômoda, mas, infelizmente, não chega a ser absurda em nossa realidade institucional. É preciso denunciá-la e até combatê-la, mas não a qualquer preço, como o que cobram esses dois movimentos, que, mesmo nada tendo que ver um com o outro, levam ao mesmo fim: a transferência, indesejável por todos os motivos, das já frágeis prerrogativas de um Poder republicano que representa a vontade política da sociedade para outro.

O sigilo do voto, apontado agora como a principal causa da absolvição de Renan, é uma conquista de um direito elementar da cidadania: o da manifestação livre e soberana de uma opção política, evitando que esta seja cerceada por qualquer tipo de pressão, repressão ou supressão. O sufrágio universal e secreto é a garantia fundamental de que a expressão do eleitor não será contaminada por algum vício de origem: a compra das consciências, o pagamento de favores, o temor de represálias ou obstáculos de quaisquer naturezas à livre manifestação de sua vontade inviolável. Sua adoção no Brasil deu o tiro de misericórdia no domínio do poder político pelos coronéis.

Pode-se argumentar que o sigilo no voto do representante não tem o mesmo valor, pois este é escolhido pelo cidadão para representá-lo e, nessa condição, o representado tem todo o direito de saber como é exercido em seu nome tal poder de representação. No refrão de uma canção de protesto, Imposto, do CD Matizes, que acaba de lançar, Djavan, alagoano como Renan, com quem seu prenome também rima, simplificou esse argumento com um axioma: “O voto no Congresso tem que ser aberto, o povo tem que saber quem tá votando o quê!” O conceito é muito nobre, é muito belo, mas, como cantava, numa canção antiga, Um Rapaz Latino-Americano, um colega de Djavan, Belchior, da Sobral de Ciro Gomes, “a vida é muito pior”. Com o voto aberto, o cidadão tomará, de fato, conhecimento de como terá votado seu parlamentar. Mas, como no Brasil não há recall, só poderá cobrar dele essa traição na eleição seguinte. E ingenuidade perigosa será sempre imaginar que esse tipo de cobrança definirá o destino de um parlamentar que ferir decoro, ética ou mesmo o interesse de seu eleitor: não são poucos os presididos por Renan no Congresso que se jactam de terem sido seus delitos lavados pelo voto popular, que nunca foi detergente.

Isso, contudo, é o de menos. Grave mesmo é que, muito antes do fim da legislatura, o grupo político que houver chegado ao comando do Executivo terá nas mãos poderes mais que suficientes para punir quaisquer infiéis por sua manifestação de rebeldia em qualquer votação de projeto ou investidura de seu interesse. Antes de impedir o representado de identificar e apenar o representante que trair sua vontade numa votação, o sufrágio aberto dará oportunidades para o presidencialismo monárquico, vigente no Brasil, exercer seu poder de punir e premiar para reinar.

O circo político reserva a seus contendores e à platéia muitas emoções fortes, e é por causa destas que muitos homens públicos, experimentados nas escaramuças da muitas vezes belicosa relação entre os Poderes, deixam de trazer ao debate a valiosa colaboração de sua vivência. Com medo de serem triturados na máquina de moer ilusões desse debate, eles se recolhem, permitindo que os vendedores das panacéias de sempre venham a público com suas receitas, que, não por coincidência, levam sempre mais água para o moinho dos que podem mais.

Os arautos destas doces catarses têm sempre à mão flautas mágicas para o encantamento geral, mas sua melodia reproduz o silvo das ilusões institucionais mais venenosas. O voto aberto, em muitas decisões parlamentares, será a brecha para a indesejável intromissão dos poderosos de plantão. E a extinção das instituições democráticas, entre elas o Senado da República, o refrão do canto das sereias que pode fazer a nau da democracia ficar à deriva. Mesmo sendo a maioria e tendo imposto sua vontade sobre a minoria de 35, os 46 senadores que absolveram Renan não são donos do Senado. Nem o são o presidente Lula e o PT, que capitanearam a manobra à Pôncio Pilatos da abstenção. E não o serão totalmente enquanto decisões importantes a serem tomadas no Senado e na Câmara continuarem protegidas pelo sufrágio soberano porque secreto.

Emoções produzem belos versos de canções, como a de Roberto Carlos com esse título, mas certamente não são as conselheiras adequadas na tomada de decisões que afetam o destino da Nação. Mesmo justa, a indignação pode gerar resultados opostos aos que propõe: abrir indiscriminadamente votações e fechar o Senado terminará por não servir à cidadania, mas a quem pretenda subjugá-la.

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