TESTEMUNHA ATRASADA
Chuva normal na manhã normal de segunda-feira na província. A rua João Colin engarrafada. O cronista já imagina a desatenção de alguém, os velhos e cotidianos problemas no trânsito. Ao aproximar-se, o cronista vê que a movimentação é na frente de um banco. Provável assalto. A província já não anda tão calma. Tudo parece estar resolvido. A vida de todos os que por ali estão segue molhada pela chuva insistente dos últimos dias. Nada além do que já não tenha passado a maioria das pessoas por viver nessa cidade-água.
O cronista chega em casa. Desfaz-se um pouco da umidade. Almoço. Antes de retornar ao trabalho, ele, de forma displicente, liga a TV. Ainda sem olhar a imagem, apenas ouve o moço do jornal falar do fato pitoresco que ocorrera na manhã encharcada: uma mulher havia corrido nua pela rua João Colin. Os policiais detiveram a ousada pedestre na frente do banco.
O cronista senta-se e lamenta. Se tivesse passado minutos antes, teria visto a manhã normal receber uma breve agressão. Ele seria premiado com uma raridade: uma mulher louca e nua (linda e nua?) atravessaria seus olhos. Comporia um desvio na paisagem.
As imagens na televisão nada mostram: apenas policiais colocando uma mulher coberta dentro de uma ambulância. A TV mostrou apenas a conseqüência do desvario. Mas o desvario em si, o inusitado que faz a alegria de qualquer cronista, este, somente alguns escolhidos puderam ver, somente alguns puderam ver a nudez debaixo da chuva, a agonia que percorreu tal decisão, os gestos, o frio, o riso geral dos olhares alheios, atônitos, até realmente perceberem que era uma mulher nua, nua sobre a calçada, dentro da segunda-feira vestida de chuva.
O cronista imagina cada um destes rostos. Cada um deles terá uma história para contar, história que o cronista somente pode imaginar, feito uma testemunha atrasada, um catador de restos e, ainda por cima, acreditando que os restos catados se tratavam de outra coisa, mais banal, mais normal. Não eram. Eram restos da mulher nua, da mulher que parou uma das principais ruas da cidade. A mulher que agora deve estar no hospital, vergonhosa de sua atitude. A mulher que o cronista não sabe o nome, o rosto, ou qualquer outra informação, soube apenas, indiretamente, do seu ato mais intenso.
O cronista segue para o trabalho. Tudo na cidade respira dentro dos eixos. Ele próprio já está respirando de novo dentro dos eixos, mas ainda assim lamenta a falta de sorte, a falta de premonição de que naquela manhã, uma mulher escreveria um verso lírico e surreal com o próprio corpo desnudo, atrapalhando o trânsito e atrapalhando-se a ela mesma. Ao cronista cabe somente recriar toda a cena em sua cabeça, como se fosse uma lembrança inventada. Como se fosse ele a rabiscar com nudez e loucura o asfalto molhado.
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