"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/12/2008
(próxima coluna: 26/12)

DA ARTE DE COMER MAÇÃS

Maçãs não são frutas banais. Frutas vulgares. Até a mais desqualificada maçã é dona de uma elegância e mistérios incomuns. Dona de uma lisura única. A maçã é uma obra de arte. Sua cor alimenta os olhos. Sua forma acaricia os dedos, ela cabe inteira na palma da mão, encaixa-se na nossa fome.

Não é à toa que a maçã esteja tão associada ao pecado. Eva pode não ter dado exatamente uma maçã a Adão, mas o vago fruto proibido foi representado por uma maçã porque somente ela poderia agüentar o peso da expulsão do paraíso.

Somente ela poderia representar a sedução, a mulher, a nudez, o conhecimento de tudo. Somente a maçã tem estrutura para representar o rompimento entre o humano e o divino. Ao comer uma maçã, somos todos adões e evas, seduzidos, fracos e felizes diante do desejo.

Não é à toa que a maçã também esteja associada à traição. Branca de Neve não comeria uma pêra, ou um pêssego com a mesma confiança. Não se deixaria levar com uma fruta menor. Mas com a maçã, sim. Com a hipnotizadora maçã qualquer um de nós pode se deixar levar. Qualquer um cai no conto da bruxa disfarçada. Pela maçã vale correr o risco de adormecer para sempre.

Morder uma maçã é extasiar-se. Primeiro os dentes rompem a frágil casca, depois adentram na carne quase arenosa de seu corpo. A língua inebria-se com a doçura, toda a boca se preenche com o seu sabor vasto. Além do som.

Morder uma maçã é fazer música. Um blues, lento, triste até. Daqueles vindos dos tempos imemoriais, feitos pelos negros que nada sabiam de erudição, apenas lamentavam e, com isso, eram eruditos. Não é som comum, não é mastigar asperezas e sim sutilezas, branduras, caminhos tortuosos. A maçã compõe-se cântico na boca de quem a degusta com lentidão e atenção.

Maçãs são frutas para serem comidas naturalmente, apesar de freqüentarem tortas, bolos, sucos, a maçã é uma fruta ritualística. Não ingerimos seus nutrientes, não nos apoderamos de suas vitaminas, mas ingerimos sua forma, sua cor, sua densidade superior. Maçãs são deusas vermelhas, vestidas de nudez, vestidas com aquela condição saborosa das fêmeas resolutas. Talvez por isso a maçã seja tão feminina, esteja tão intimamente ligada aos mistérios e assombros da mulher.

Alguns descascam a maçã para comê-la. Descascar é para laranjas e bananas, frutas incompletas, que não nos permitem degustá-las na inteireza. Descascar uma maçã é ofendê-la. Reparti-la ao meio com uma faca é ofendê-la. Maçãs devem ser levadas diretamente aos dentes, eles sim, instrumentos propícios ao primeiro contato, ao primeiro rompimento da pele perfeita da maçã.

Mesmo sendo fruta do frio, seu corpo é quente, mas delicado aos tatos insensíveis.

É preciso cuidado para não estragá-la, não danificá-la naquilo que ela tem de melhor: a cor, o sabor, a representação mítica que carrega. Uvas, figos, tâmaras, pêssegos tentam, mas não conseguem. Somente à maçã foi dada a perfeição.

Arquivo de colunas anteriores:

01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52 , 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 6768, 69, 70, 71, 72 , 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82   

Voltar