GRÁVIDO DE SILÊNCIO
O silêncio não veio. Precisava tanto, mas ele não veio. É possível que nem venha mais, disseram-me, é possível que o silêncio tenha morrido pelo caminho. Então passei a olhar sempre pelos caminhos que andava, talvez encontrasse o cadáver do silêncio. Feito um desses animais mortos em avançado estado de putrefação. Se eu o encontrasse morto, não teria nojo, eu recolheria os restos do silêncio, espantaria as moscas, despejaria as larvas na terra e choraria sobre seu corpo.
Mas o silêncio desapareceu. Não deixou corpo, não deixou pista e isso me fez mais atarefado ainda. Atarefado com a esperança de que um dia ele retornasse, de que um dia ele viesse novamente e me chamasse de irmão. Só o silêncio podia me guiar. Mas ele não veio. Ele entrou para o rol dos desaparecidos, ele evaporou no mundo. Olhei, então, para as nuvens. Era possível que ele estivesse lá, em estado gasoso, só esperando um pouco para liqüefazer-se novamente e me banhar. Nada, as nuvens apenas insultaram-me com trovões e disseram que o silêncio não é bem-vindo nas alturas. Mandaram-me olhar dentro da terra. Levantei pedras, vasculhei formigueiros, ninhos de tatu, cavernas, buracos onde são enfiados os pilares das pontes e dos prédios. Nunca vimos o silêncio por aqui, informaram-me os escuros da terra. Tenta nas águas, quem sabe ele não tenha se afogado em algum rio ou mar?
E mergulhei em tudo que é líquido. As águas avisaram-me: somos mentirosas, parecemos parceiras do silêncio, mas não gostamos dele, por aqui ele não sobreviveria. E faltaram-me lugares para procurar e eu chorei, solitário, porque o silêncio não veio e nem disse para onde foi.
Desista, também me disseram. O mundo faz barulho, barulhe junto, faça seus gritos, ruídos, extenue os ouvidos de todos aqueles que extenuam seus ouvidos. Eu tentei, eu tentei. Enquanto buscava o silêncio, acelerava mais o motor do carro, berrava mais alto para que passassem rápido, gritava impropérios aos pássaros, aos ventos. Ladrava, ameaçando os cães. Tornei minha voz aguda para sobrepor-me a voz das mulheres e crianças.
Rasguei minha garganta com sons que nem sabia o nome e a procedência. Não que eu tivesse desistido de esperar o silêncio ou de encontrá-lo, mas é que, barulhando, gritando, acompanhando a música trágica do mundo, conseguiria um pouco de força, conseguiria um pouco de esquecimento para seguir.
Não deu certo. Acusaram-me de louco, mandaram-me ao hospício procurar o silêncio, e eu ri, ri alto, nada é mais distante do silêncio do que a loucura. Eles não acreditaram. Amarraram meus braços, prenderam-me a remédios vários.
Vez em quando me perguntam se já esqueci o silêncio. Minto, digo que a falta dele não me incomoda mais. Digo que desisti de encontrá-lo. Alegram-se e me deixam em paz. Sempre que isso acontece parece que dentro de mim algo mexe-se feito um feto. Estaria eu, um homem velho, grávido de silêncio?
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