JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 24/1/2008
(Próxima coluna 31/1)

É fé no povo e Pé no chumbo

         Político popularíssimo em Campina Grande, Paraíba, para cuja prefeitura foi eleito "uma par de vêiz", como ele mesmo diria, em seu estilo desabusado, franco e pouco elegante no vernáculo, Severino Cabral é freqüentemente citado em minhas palestras como um mestre da práxis administrativa e do marketing político.
         Excelente exemplo de sua sabedoria nesse campo foi dado no dia em que recebeu em sua casa para almoçar o embaixador dos Estados Unidos em Brasília. Antes de contar o episódio, convém adiantar que sua casa ficava permanentemente aberta à visita de seus eleitores, que entravam, iam até a cozinha, faziam as refeições e saíam com naturalidade. E também que seu filho mais velho, Milton, era diplomata de carreira e estava na embaixada do Brasil na Romênia quando o ditador comunista Nicolai Ceausescu foi derrubado por uma insurreição popular. Quer dizer: estava no cargo, mas não exatamente em Bucareste, e, sim, jogando uma partida de tênis no Country Clube, no Rio. Só por isso, já dá para perceber que não é o melhor herdeiro das manhas nem dos talentos do pai.
        Pois bem, o diplomata da família levou o embaixador americano para o para o almoço e ficou indignado quando viu o pai ouvir o cochicho de um assessor e interromper abruptamente a conversa para sair da sala de jantar para o hall da casa. Acompanhou-o e percebeu que ele, que era um homem alto e forte, conhecido como "Pé de chumbo", se abaixava para ouvir os apelos de uma senhora muito pobre e andrajosa.
        Interpelou-o:
        - Papai, como é que o senhor deixa o embaixador dos Estados Unidos falando sozinho à mesa para vir atender a essa senhora?
        E o velho respondeu na bucha:
        - E eu sei lá onde diacho esse homem vota. Essa mulher eu sei. Ela vota aqui. E vota em mim.

        Outra vez, em visita a Salvador, ficou encantado com as linhas arquitetônicas do Teatro Castro Alves. Contratou um arquiteto, mandou que ele fosse à Bahia e copiasse o prédio, só que em dimensões reduzidas. Daí, nasceu o Teatro Municipal de Campina Grande. Na hora de lhe dar nome, chamou o assessor especial para teatro, radialista Wilson Maux, e lhe encomendou uma lista de denominações. Este espremeu os miolos e listou os literatos mais famosos da cidade e do Estado, mas isso não satisfez o chefe.
       - Oh, seu Wilson, já vi que o senhor não entende nada de teatro. Nome de teatro tem de ter rima, rapaz.
       - Como rima, seu Cabral?
       - Rima, ora essa. Não sabe rimar? Teatro Municipal patati patatal.
       - Sim, mas que nome rimaria?
       - Teatro Municipal Severino Cabral, seu idiota.
       - Mas, seu Cabral, o senhor nunca escreveu, dirigiu nem atuou em teatro nenhum. Por isso, não pode dar nome a um teatro.
       - Que besteira, esse menino! E Plínio Lemos jogava bola?
       É que o Estádio Municipal da cidade tem o nome do ex-prefeito Plínio Lemos.

       Certa vez, seu principal adversário em Campina Grande, o senador Argemiro de Figueiredo, resolveu lançar contra ele numa campanha para a prefeitura um jovem deputado estadual pelo PTB, conhecido pela habilidade no uso das palavras. A sensação da campanha do rapaz, advogado em começo de carreira, eram seus discursos, todos metrificados e rimados, nos moldes dos repentes da poesia popular. Severino Cabral, que havia inovado ao contratar um marqueteiro profissional para a própria campanha e por consultar as intenções do eleitor em pesquisas, tomou conhecimento da preocupação da assessoria com o crescimento surpreendente e rápido do outro candidato.
       - O rapaz é poeta, seu Cabral - justificou seu marqueteiro.
       - Ora, então, o problema é fazer versos? Eu também sei fazer.
       E foi anunciado aos quatro cantos da cidade que "Pé de chumbo" versejaria no palanque do distrito de São José da Mata no domingo seguinte. Ele foi, subiu ao palanque e sapecou para a multidão emudecida:
       - Povo de São José da Mata,
       Mata de São José: ou São José me mata
       ou eu mato São José.
       O silêncio de perplexidade prenunciou a derrota. O vencedor, Ronaldo Cunha Lima, seria deputado federal, senador e governador do Estado. O atual governador é seu filho, Cássio.
       
       Milton Cabral também foi governador, mas o pai, não: foi vice e seria cassado na ditadura militar, da mesma forma que o fora Cunha Lima. Na campanha para o governo do Estado - com o senador João Agripino na cabeça da chapa e ele próprio de vice -, "Pé de Chumbo" protagonizou episódios que enriqueceram o folclore político paraibano. Consta que, no palanque, um dia, surpreendeu a assessoria da campanha com uma afirmação inusitada:
      - Eu e o dr. João Agripino formamos um trio...
      Um assessor, pressuroso, soprou, corrigindo:
      - É dupla, seu Cabral. Trio são três.
      - Que besteira. Trem não anda em trio e não é dois?
     Na mesma campanha (vitoriosa, por sinal), os candidatos sentaram-se para comer num restaurante do interior e pediram bife com arroz. Foram-lhes servidos dois pedaços: um maior e outro menor. Ele apressou-se em se servir do mais avantajado.
    - Ora, Cabral, um homem educado pega o pedaço menor - resmungou o senador, de notório temperamento ranzinza.
    - Deixa de besteira, João! Você não é um homem educado? Então, se ia ficar com o menor mesmo, está reclamando de quê?
Seus adversários contavam ainda que, certa vez, um auxiliar menos alfabetizado tentou socorrer-se dele antes de preencher um cheque de sessenta cruzeiros.
    - Sessenta se escreve com esse ou com cê, seu Cabral?
    - Faz dois de trinta - teria respondido, ágil e espertamente.
     Em outra ocasião, seguindo conselho da assessoria para se referir ao máximo possível de interlocutores, sempre que discursasse, inaugurou um cemitério num distrito de Campina Grande, proferindo:
     - Conterrâneos e subterrâneos.
_______________
(Texto selecionado por Sílvia Bruno Securato para o livro Histórias Inesquecíveis, editado pela Oficina Editora no Natal de 2007)

Colunas anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 4445, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116 , 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125126, 127, 128, 129, 130 , 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 , 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157

« Voltar