HISTÓRIA DE MARIA E JOÃO
Deixa a água escorrer tronco abaixo. Precisa. Choveu muito, mas ela, Maria, estava suja. Cheia de ranhuras. Rasurada. Ele foi embora. João. Homem, filho, estorvo. Foi embora. Era sempre aquele rame-rame, aquele ir não ir dos covardes. No começo, gostou muito de João. Depois, acostumou, por fim, não pôde mais. Só que diferentemente das amigas que mandavam seus homens embora para logo em seguida colocar outro, melhor ou pior, no lugar, Maria não conseguia. Maria ficava fincada no medo. Nem sabia bem de quê. A própria mãe lhe dava conselhos: “fosse no meu tempo, minha filha, tinha explicação, mas agora que tudo pode, você, em vez de aproveitar, fica aí martelando esse fracasso.”
Ria da franqueza moderna da mãe, mas voltava para casa, antiga, casada, cheia de vontade de libertar-se. Fazia a janta, comia olhando para João que olhava a novela:
– O que aconteceu, João?
E João responde que o autor da novela é maluco, que é por isso que não assiste mais a novela. Maria pega os pratos, os talheres, leva até a pia:
– Com a gente, João, o que aconteceu com a gente? E João ri de uma peripécia qualquer na televisão:
– Não sei, aconteceu alguma coisa? Você cortou o cabelo?
Maria volta-se para a pia, lava a louça do jantar. Chora porque é sozinha demais. Sem filhos. Apenas aquele marido que durante um tempo até foi transformado em filho, mas, depois, partiu, como fazem os rebentos, ficou apenas o corpo rosado, peludo, flácido de um homem que assiste a novelas e diz que não assiste. Ela tem desejos de morte. Podia virar, perguntar novamente o que aconteceu e ao ouvir resposta qualquer, enfiar a faca na barriga-alvo de João. Simples, resolvia. Resolver não resolveria, mas que iria fazer um bem, lá isso iria. E Maria enxuga as lágrimas, ri de seu próprio pensamento. Coisa de novela. Vira-se, vai até a televisão, desliga:
– Vou tomar um banho. Quando sair, quero você fora dessa casa.
Nem sabe como conseguiu, de onde arrancou coragem, parece até que ouviu os aplausos da mãe, e as amigas dando gritinhos de felicidade. Mais uma para o grupo das solteiras caçadoras. Maria quase desmancha a ordem, quase diz que estava brincando. João levanta-se, abotoa a camisa e segue para o quarto sem palavra. Maria o segue e vê o marido colocando as coisas dentro de uma bolsa. Tem o impulso de ajudá-lo a guardar direito as roupas para não amassar. Contém-se. Ele movimenta-se lento:
– Você não ia tomar banho?
E ela sai do quarto derrotada. Vai para o banho pisoteada pela indiferença do marido. Nenhuma reação, nenhuma surpresa, João estava esperando, mais do que ela, a libertação. João, sua alma gêmea, seu duplo, aquele que construiu a vida também preso às conveniências e que nunca pôde, ou quis, sair do caminho seguro. João, o que estava esperando apenas a palavra de desordem, a palavra de fracasso para que pudesse sumir.
Maria deixa a água escorrer tronco abaixo. Tudo em que acreditava se esvai nessa água. Ouve a porta bater. Maria, a que abandona e é sumariamente abandonada, enxuga-se, veste-se, passeia pela casa. Maria, a vazia de graça. Dorme. Tenta.
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