"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/3/2009
(próxima coluna: 26/3/2009)


CRÔNICA DE GATOS

O primeiro chegou ao acaso. Pequeno, miando, sem estirpe nenhuma que o identificasse. Abandonado, fugido, nunca soube direito de onde veio. Resolvi ficar com ele. Nunca tinha tido gatos, apesar de gostar muito deles. Mas aquela imaturidade constante que sempre me perseguiu não havia me permitido criar algo, seja planta, bicho ou gente. Mas como esse primeiro aconteceu, resolvi crescer. Ele cresceu também.

Eu o chamava de Osman, em homenagem ao escritor Osman Lins. Ficou comigo um ano e pouco. Vida breve para um gato. Mimei demais, talvez por isso não tenha sido ágil o suficiente para escapar do atropelamento. Depois disso, pensei: melhor ser imaturo de novo, afinal meu primeiro bicho de estimação vive menos de dois anos. Azar, destino, carma. As explicações são várias, só sei que Osman era um gato temperamental, deliciosamente tarado, apesar da castração.

Já estava me acostumando com a ideia de não ter mais gatos: falta de tempo, fico muito fora de casa, moro próximo da BR. As desculpas pululavam, a melhor de todas era: quando encontrar um gato abandonado eu pego. Partindo do princípio que gatos são animais que jamais perdem a dignidade ao ponto do abandono, seria difícil encontrar um gato, como se encontram cachorros e humanos, em petição de miséria.

Só que lá vem o destino conspirar novamente. Amiga me telefona e diz: “eu tenho um gato pra você. Você ainda quer?” Lá vai o imaturo crescer à força de novo. Lá vou, (paradoxalmente, com aquela alegria infantil diante dos animaizinhos) buscar o gato. Não era tão pequeno quanto Osman, um pouco mais nobre, pois se percebe sua linhagem siamesa. Está há uma semana comigo. No segundo dia, não, no primeiro dia já era o dono da casa e eu é que agora sou seu bicho de estimação. Quem tem gato sabe dessa condição e se sujeita a isso com toda a alegria do mundo.

Novamente um gato silencia minha casa, poetiza meu espaço. Novamente um gato cresce diante dos meus olhos e cabe a mim protegê-lo e dar nome, tarefa complicada. Quero um nome literário, claro. A princípio vou só chamá-lo de gato, dissecar um pouco mais sua personalidade e ver qual persona literária pode servir para ser seu nome. Até lá, vou satisfazendo seus desejos, me preocupando a cada sumida.

Por enquanto ele não descobriu o mundo externo, mas gatos, assim como os filhos, crescem e não podemos deixá-los presos. Espero que esse fique mais tempo comigo, envelheça comigo. Que eu não saiba de sua morte como soube a do primeiro: prematuramente. A morte é sempre tão ofensiva à superioridade dos gatos.

Faço essas digressões olhando para ele, que não faz digressões, vive apenas, na inteireza de sua animalidade. Eu sei que terei um ano de complicações pela frente: trabalho, estudo, por isso vai ser bom olhar para meu gato ainda sem nome e aprender a sua delicadeza, a sua poesia completa completando os meus dias. O sol se põe atrás de mim. Atrás da serra do Mar. Atrás de um horizonte que desconheço. O Oeste: Chapecó, Argentina, Chile. Pacífico e mais além. Quase sempre tive as costas voltadas para as tardes. Sou matutino. Quando criança, meu quarto nascia com o sol. Ele vinha lá pelas bandas de São Francisco e chegava ao meu quarto já quente e amarelo, como todo bom sol deve ser. Eram festivas as manhãs. Eu acompanhava a diminuição da sombra, à medida que o tempo passava, até que eu pudesse pôr o pé sobre minha cabeça: meio-dia. A vida no centro. As tardes aconteciam, mas não me fascinavam. Tento me lembrar agora, tento resgatar essa indiferença na memória, seus motivos. Não encontro. Sei apenas que nas tardes o sol escondia-se atrás do morro de Jaraguá. Eram tempos matutinos, abertos, puros.

Depois vim para a “cidade grande”. A primeira vez que morei sozinho, o nascer do sol era visto da janela da sala. A paisagem havia mudado, havia casas, telhados, muros, mas como a casa era num morro, proporcionava uma certa visão do alto. As manhãs plenas de verão me visitavam muito. Eu costumava dormir na sala para acordar cheio de luz. E acordava. E gostava de ver os alaranjados matutinos acontecerem lentamente, às vezes refletidos em nuvens, eles iam se esvanecendo, se esvanecendo até que se transformavam em manhãs azuis. Algumas vezes as manhãs ficavam cinzas, claro! As nuvens venciam. Coisa comum às terras da Colônia Dona Francisca. De qualquer forma, eram manhãs visitando minha casa. Era o dia chegando e avisando que a vida acordava. Novamente as tardes eram perdidas, antecipadas pelas outras casas mais acima.

Agora, moro noutro lugar. A ordem inverteu. As manhãs não chegam mais na hora na minha casa. Em compensação, as tardes encontraram pouso certo. Pela primeira vez posso ver todo o evoluir da tarde pela janela do meu quarto. O contrário se estabelece. Elas começam plenas, quentes, azulescentes demais. E aos poucos vão se contornando em distância, frescor, e acontece aquela luminosidade inigualável dos crepúsculos. Hoje, percebo, apesar da afetividade que tenho com o nascer-do-sol, que o pôr-do-sol é mais lento, mais intenso, parece acariciar melhor a montanha. Os crepúsculos que avisto da minha janela atual, ensinam-me lições de partir, ensinam-me a vida anoitecendo silenciosa e vasta. Agora, percebo que foi bom não ter tido tardes memoráveis na infância, porque as atuais estão se apresentando inéditas, cheias de nuances desapercebidas até então e isso me deixa contente.

Sem ser traidor com as manhãs, penso que as tardes agora me parecem mais propícias aos poemas, às palavras tenras, macias, mas firmes. Algo que somente a tarde e a experiência conseguem. Se antes eu era todo costas para a tarde, agora sou frente, olhos e peito abertos ao espetáculo que se apresenta em minha janela.

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