JOSÉ NÊUMANNE PINTO
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
Coluna de 3/4/2008
(Próxima coluna 10/4)
A peleja do Trio de pé de serra contra o forró eletrônico
O paraibano Antônio Barros é um ídolo da música regional junina no Nordeste: compôs mais de 600 canções, muitas das quais foram sucessos absolutos de intérpetes como Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Três do Nordeste e Ney Matogrosso (Homem com agá). Mas isso não evitou que protagonizasse um episódio no mínimo contraditório para um artista de sua importância: foi contratado para abrir o show cuja atração principal era a banda Cascavel, da qual ele, sua parceira e mulher Cecéu e a filha dos dois, a cantora Maíra, nunca ouviram falar. No entanto, a cidade de Aroeiras, no interior da Paraíba, estava em polvorosa com a chegada da banda e ele recebeu o cachê e instruções rigorosas para deixar o palco assim que a banda chegasse. Ao fazê-lo, testemunhou o frenesi histérico com que a atração principal da noite foi recebida por seu público. O fato marcante registrou a transição do forró de pé de serra, cultuado por ele e outros grandes artistas, como Santanna Cantador, Flávio José, Nando Cordel, Dominguinhos e outros, para o forró eletrônico, produzido no Ceará.
Capitaneadas por um empresário pra lá de bem-sucedido residente em Fortaleza, bandas com instrumentos eletrificados e nomes semelhantes, formadas por instrumentistas anônimos, todos funcionários do mesmo patrão, dominam a programação musical das emissoras de rádio e televisão e reinam absolutas nos palcos do interior do Nordeste nas festas juninas. Manoel Gurgel, o imperador do forró cearense, se dá ao luxo de propor parcerias aos grandes compositores regionais, numa tentativa de cooptá-los, da mesma forma como faz com programadores de emissoras de AM e FM em praticamente todas as cidades dos nove Estados nordestinos. Mas pelo menos nisso ele ainda não obteve êxito.
Ao contrário, os representantes da música regional junina autêntica no Nordeste começam a reagir contra a invasão do forró eletrônico. E acabam de encontrar um aliado absolutamente inesperado... na Suíça. Tudo começou em Patos, no sertão e no meio do mapa da Paraíba, cidade onde se diz que se pode fritar ovos no cimento da calçada, tão quente se faz presente o sol por lá. Pierre Landolt, herdeiro de um grupo multinacional de índústrias farmacêuticas, se instalou em sua zona rural, onde estabeleceu uma fazenda para criar bovinos, ovinos e caprinos. Com os peões instalados em sua propriedade, ele aprendeu a amar os trios de forró de pé de serra formados por sanfona, zabumba e triângulo. E os apresentou a seu amigo cineasta Bernard Robert-Charrue, que, ciceroneado pelo casal de dançarinos de forró Rilávia Cardoso e Ajalmar Maia, fez o longa metragem Paraíba, meu amor, cujo título foi inspirado na canção homônima de Chico César, nascido um pouco além de Patos, em Catolé do Rocha, nas proximidades de Brejo do Cruz, berço de Zé Ramalho.
O cineasta suíço registrou em imagens coloridas o inesperado encontro do acordeonista de jazz francês Richard Galliano, elevado ao panteão dos maiores instrumentistas da Europa, com o sanfoneiro pernambucano Dominguinhos, herdeiro reconhecido pelo Rei do Baião e herói do europeu. O duelo entre o jazzista e o forrozeiro se deu no palco principal do lugar onde se realiza o que se chama "o maior São João do Mundo": o Parque do Povo, em Campina Grande. O francês também acompanhou Chico César na canção-título e contracenou com dois sanfoneiros paraibanos, Pinto do Acordeon, que mora em João Pessoa, e Aleijadinho de Pombal, cidade que fica entre Patos e Catolé do Rocha.
Concluído o preito cinematográfico ao forró autêntico, em plena temporada de resistência contra o forró eletrônico de Manoel Gurgel, o resultado foi apresentado em Karlsruhe, na Alemanha. E com tal êxito que está sendo prevista ainda este ano uma "noite do forró", no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, com os protagonistas do documentário. Um dia depois de o filme ter sido lançado no Cine Bangüê, no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa, todos estes artistas populares se reuniram com mais 50 forrozeiros na estréia do filme no auditório da Federação das Indústrias da Paraíba (Fiep), em Campina Grande. Para lá acorreram Flávio José, apontado por Dominguinhos como seu herdeiro; o patriarca Antônio Barros com suas Cecéu e Maíra; Santanna Cantador, natural de Juazeiro de Padre Cícero e com um timbre muito semelhante ao de Gonzaga; e outros astros do forró de pé de serra, para os quais a vulgaridade do duplo sentido pornográfico das "bandas" eletrônicas (como a Calcinha Preta) não é somente uma questão de decência, mas de sobrevivência.
O filme de Charrue não tem a qualidade do documentário de Wim Wenders sobre o resgate da música tradicional cubana graças ao espetáculo produzido pelo guitarrista americano Ry Cooder, Buena Vista Social Club. Mas pode ser que ele venha a se tornar no ponto de partida para o resgate da mesma autenticidade que o autor da trilha sonora de Paris, Texas evitou que se perdesse no Caribe, impedindo que o forró de pé de serra seja sepultado no sertão pelo comercialismo urbano das bandas de Manoel Gurgel.
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