Entrei para as estatísticas
Entrei para as estatísticas de roubo de carros e motos. Lá se foram minhas pernas de borracha. Numa inocente quinta à noite, levaram minha moto nova. Ainda não estávamos completamente acostumados um ao outro, ainda éramos homem e máquina se conhecendo. E fomos abruptamente separados. Eu continuo inteiro, mas ela já deve estar desmanchada por aí, servindo de peças a gente desonesta.
Muitos já tinham me contado da sensação que é ser roubado. Eu acreditava, mas não sentia. Agora sei. Sei da invasão, da impotência, do desgaste que é ir a uma delegacia e ver na cara do funcionário a mais absoluta indiferença. Ver que uma recuperação do bem roubado seria golpe de sorte e não resultado de um trabalho efetivo dos responsáveis pela segurança.
Para além do discurso já tantas vezes ouvido (todos os assaltados, roubados, seqüestrados o pronunciam, com maior ou menor ferocidade, mas todos justos em suas argumentações) fico a pensar o quanto a minha vida estava ligada a esse veículo. O quanto estamos todos ligados às nossas pernas de borracha. Dos compromissos que assumimos porque sabemos que vamos chegar a tempo ao simples status de ter um veículo, muita coisa passa a girar em torno desse bem. Será que vale a pena? Será que as cidades cada vez mais congestionadas não vêm dessa "necessidade" de possuirmos mais tempo, algo que, aparentemente, o carro, a moto nos dão? São coisas que me surgem, agora que tenho gasto algum tempo esperando ônibus.
Sempre andei de moto, porém nunca tive muito em mim a mística "moto e liberdade". Sou mais adepto da praticidade, da economia, da velocidade com que a moto se movimenta. Enfim, era uma relação quase cartesiana. Lógica pura. Claro que em certos dias de chuva eu questionava as vantagens de se ter uma motocicleta, mas em certos retornos da praia nos domingos à tarde eu sempre agradecia por ser motociclista.
Por isso, é estranho ter que, de uma hora para outra, readequar todo o tempo, toda a rotina construída pela agilidade que a moto me dava. Novos horários, novo ritmo proporcionado pelo "busão". Em mim, terá que nascer uma paciência que perdi há muito. A paciência do pedestre, do usuário do transporte coletivo caro, lento, cheio, apesar da propaganda alegando o contrário. Vou ter de aprender a esperar. Coisa ingrata para motociclistas, diga-se de passagem, mas espero que seja por pouco tempo, até conseguir adquirir novas pernas de borracha e sair contente por aí.
Outra coisa interessante é que muitos me disseram que poderia acontecer coisa pior. Que os desígnios de Deus são misteriosos. Esses consolos são atenuantes. Exercícios de suporte para a dor da perda, seja do objeto, seja de alguém. Há sempre a poliana fala de que poderia ser pior. Claro que poderia, mas também poderia ser melhor. Enfim, é o jogo do destino que nós, mesmo não sabendo muito bem as regras, insistimos em jogar.
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