JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 5/6/2008
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O golpe baixo (e sujo) da "inocência plenária"

               Políticos querem impor à Justiça a impunidade total e exclusiva para eles

Há um golpe baixo (e sujo) em tramitação no Congresso Nacional. O deputado federal Márcio França (PSB-SP) assumiu, com nome e sobrenome, a liderança de um movimento, antes já ensaiado por seu colega Jader Barbalho (PMDB-PA), para engendrar uma legislação que porá fim à vitaliciedade de todos os cargos. Com isso, pretende atingir o alvo precípuo de reduzir a atividade dos ministros dos tribunais superiores a mandatos de oito anos. Ao fim deles, estes teriam de se submeter a novo processo de seleção, a cargo do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, dos servidores dos órgãos e dos demais brasileiros. O truque para evitar a argüição de inconstitucionalidade é esperar que os ministros atualmente nos postos fiquem neles até a aposentadoria (a compulsória aos 70 anos), subordinando as futuras indicações aos novos critérios, que também retirariam do presidente da República a prerrogativa de dar a palavra final a respeito delas.

O principal objetivo dessa manobra é ampliar a impunidade de que os parlamentares já gozam, mas não plenamente, pois o foro privilegiado, que os livra dos incômodos de freqüentar juizados de primeira e cortes de segunda instâncias, não os torna imunes ao julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). O que eles querem mesmo é conquistar algo similar ao privilégio concedido pelo ex-dirigente sindical na Presidência da República a seus colegas, ao vetar a obrigatoriedade de os órgãos representativos de corporações submeterem suas escritas contábeis aos tribunais de contas: a absoluta falta de controle externo. E também avançar a passos de gigante na impunidade alcançada com a ampliação do conceito de imunidade parlamentar rumo à "inocência plenária" - não apenas a presumida, que tem sido muito invocada pelo presidente da República na nova função a que ele se atribuiu de generoso perdoador-parcial da República. A expressão "inocência plenária" é exata, seja por restringir a absolvição prévia aos freqüentadores dos plenários das Casas legislativas, seja por lembrar as "indulgências plenárias", pedacinhos do paraíso vendidos pelo Vaticano aos ricaços carolas interessados em adquirir o olor da santidade sem a necessidade de praticar a caridade como condição sine qua non.

O patrocínio anterior por um prócer que, em vez de halo sobre o crânio, portou algema nos pulsos denunciava por si só a sórdida natureza oportunista da causa. Mas, afastado o líder impróprio e após um período passado no limbo do anonimato, seus defensores fizeram-na voltar pelas mãos de um socialista, cuja ideologia funciona como uma espécie de óleo sagrado capaz de amansar feras e promover ovelhas negras a pastores de rebanhos. Acenam eles com a democratização da escolha, transferida da imposição solitária do presidente para a negociação colegiada dos representantes do povo (passando, é claro, pelas corporações), como se isso a tornasse mais democrática e popular.

Trata-se de vil engodo. De fato, o presidente escolhe a seu bel-prazer os ministros dos tribunais superiores, mas eles são submetidos ao Senado, composto por representantes dos Estados. Se este apenas ratifica as escolhas, não é um problema do presidente ou do sistema utilizado para o preenchimento dos cargos , mas um vício da natureza de um Congresso que só reage às ordens do Executivo como os cachorros de Pavlov: ou salivam ou apenas balançam a cabeça. A vitaliciedade dos ministros dos tribunais superiores é que garante o funcionamento autônomo de um Poder republicano sem o qual a democracia não funciona. Por ser um Poder julgador dos atos dos outros dois Poderes, um que legisla e outro que executa, o Judiciário tem de assegurar, de forma indiscutível e inviolável, a independência de seus membros. É por isso que sua substituição só é possível em situações muito excepcionais. E também que, mais que no Legislativo e no Executivo, os ocupantes da Suprema Corte de Justiça podem crescer moralmente para caber na cadeira que lhes reservou a isolada decisão presidencial. Foi o que ocorreu na histórica abertura de processo contra os cidadãos chamados de "mensaleiros", acusados de trocar apoio a projetos do governo por propina. Mesmo escolhida por um chefe partidário, a maior parte dos ministros do STF não se curvou aos interesses pessoais ou grupais da patota no poder.

É por isso, ainda, que o líder do partido no governo, o PT, Maurício Rands (PE), reclama em alto e bom som do que chama de "judicialização" da política, expressão usada para depreciar decisões judiciais em nome da mesma farsa da democracia direta com que se tenciona entregar às corporações e aos grupos politicamente organizados o poder de indicar os futuros membros das cortes superiores. Segundo o líder petista, "a soberania popular é exercida na democracia representativa brasileira através dos Poderes que são votados".

Ora, a boa e velha democracia moderna, que não foi inventada pelo PT, mas pelos oficiais de João Sem Terra, na Inglaterra, e refundada pelos colonos britânicos na América do Norte, começa no voto, mas não se restringe apenas a esta livre e soberana manifestação popular. Ela depende basicamente do funcionamento de instituições impessoais que se vigiam, se controlam e se punem mutuamente - os tais "freios e contrapesos" dos amigos de George Washington e Thomas Jefferson. A vitaliciedade que garante a independência dos juízes supremos é tão essencial ao funcionamento do sistema quanto ao direito inviolável do cidadão de manifestar-se na urna livre de quaisquer pressões. A redução da democracia ao voto e a submissão da Justiça ao Parlamento, em nome da cidania, são manifestações interesseiras de uma casta muito pouco interessada nos direitos deste, mas empenhada, isso sim, em garantir a própria impunidade ampla, geral e irrestrita. Trata-se de um cínico e autoritário assalto às instituições.

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