"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/6/2009
(próxima coluna: 9/7/2009)


BARDA DE RAPAZ PEQUENO

Ouço casualmente a palavra barda. É uma dessas palavras impregnadas na memória. Acredito que todos nós tenhamos palavras estranhas, pouco usuais, quase como se fossem palavras de estimação ou de ódio. Geralmente não são usadas, mas ficam lá, no depósito das lembranças e, vez ou outra, alguém tira o pó, joga uma luz sobre ela e a palavra renasce.

Com esse renascimento vem toda uma gama de recordações, boas ou más, vai depender da história. Normalmente, se filtradas pelo tempo e pelo humor, mesmo a mais espinhuda das palavras consegue ser divertida. Outras não: às vezes uma palavra que ressurge põe a gente em carne viva de novo, e de novo tudo demora a cicatrizar.

Na verdade, em mim, barda nunca esteve sozinha, era sempre “barda de rapaz pequeno”. Por falar em “rapaz pequeno”, uma curiosidade: levei muito tempo até perceber que eram duas palavras, para mim sempre foi uma coisa só: rapazpequeno. Mais do que um substantivo e um adjetivo, toda uma condição de vida, todo um condicionamento à ordem social estabelecida pelos adultos da família. Eis de onde vem a expressão usada na minha família: qualquer tentativa de se desestabilizar o sistema era tida como “barda de rapaz pequeno”, combatida com indiferença, um pouco de escárnio, e para os casos mais graves, a velha e boa cinta desenhava na pele das costas e da bunda os limites da barda.

Fui conferir no dicionário se o significado de barda batia com o que me foi ensinado. Eis que descubro que barda oficialmente vai muito além do popular “mania”. Revelou-se então como: “1. Sebe de espinheiros ou silvas entrelaçadas. 2 Pranchão de escora para muros que ameaçam ruir. 3. Tapume de madeira de um curral. 4. Camada. 5. Pilha, montão, ruma. 6. Grande quantidade: erros em barda. 7. ant. Armadura de metal que defendia o pescoço e o peito do cavalo de guerra.” Coisas tão distantes do conceito comum por aqui, que resolvo fazer mais umas pesquisas e descubro que “barda” é uma maneira incorreta, caipira, de falar “balda”. Essa sim: “1. Defeito habitual, mania ou predileção.”

Claro que a “chique” e dicionarizada balda nem chega aos pés da “ignorante” barda. O “R” contido na palavra desvirtuada pela fala do povo dá a ela uma sonoridade muito mais forte, mais precisa do que o frágil “L”. Essa é uma daquelas alterações fonéticas em que o usuário da língua, sem saber o “correto”, consegue dar uma dimensão maior à palavra. Os casos são vários, principalmente se formos para dentro do Brasil profundo, como foi Guimarães Rosa, por exemplo.

De qualquer forma, apesar de já ser um rapaz grande, algumas bardas ainda permanecem comigo, escondidas, expostas, mas todas bem enraizadas no que sou. Outras perderam-se no tempo, foram vencidas pela idade, pela razão e pelo sempre providencial esquecimento. O que importa é que a palavra continua intacta.

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