1ª quinzena de maio de 2010 - Coluna 129
(Próxima coluna: 18/5/2010)
"SERENA"
O dia era vermelho e a chuva gotejava calda de morango. As pessoas eram doces, porém, rubras.
O sangue escorria por entre as pernas da moça que aguardava, no ponto, o ônibus da linha que levava da paixão ao ódio – o ponto final dos desamores. Ninguém, naquelas paragens, conhecia quem tivesse voltado intacto desse destino.
O trajeto era estampado nas manchetes dos jornais; virava destaque nas edições mensais; exibia-se em livros nos casos mais extremos, com detalhes mórbidos e sensuais.
A traição subia no coletivo em algum ponto pelo meio do caminho. Engraçado que ela sempre descia antes do ponto final, sorrateiramente. Voltava a pé, escondendo-se pelos becos do desprezo, fugindo do arrependimento; vinha só, desacompanhada, a roupa rasgada, os cabelos em desalinho, um sorriso de mórbida satisfação – como toda mulher fatal.
Naquele dia, nenhum sinal ou prenúncio de tragédia Bufa de amor e desenlace. O aspecto era de sorvete rosado com um toque de chocolate; pirulito de criança, exibindo um arco-íris de açúcar envenenado.
A moça estampava um sorriso inocente, um certo brilho rubi no olhar. Nem ligava pra poça vermelha que se formava em seus calcanhares. Não notou os sinais; não pressentiu seu destino.
Dona morte espiava de longe. Esperava o momento de arrebatar em seus braços fosse quem fosse, entre moça, objeto de paixão e ódio e a traição – sua auxiliar de primeiro escalão, sempre agindo disfarçada, dissimulada.
Era tão leve o corpo que sangrava entre as pernas... Uma pluma frenética e tremulante nos braços da fatalidade, em regozijo, sendo carregada. A faca continuou seu curso no corpo inerte. O sangue agora jorrava raivosamente. A chuva agora era vermelha; a alma verdejava, a calda de morango era acre. As pessoas tornaram-se plúmbeas. O ar tornara-se amargo.
O fotógrafo em preto e branco; o jornal esquálido; o motorista do ônibus, agora, pálido.
E eis que a tarde findava.
E a noite continuou seu passeio pela noite nublada. Passos de pluma, cantarolando, versejava uma última trova sem lágrimas.