O FANTASMA BRANCO
O teclado. A tela em branco. O fantasma eterno da falta de assunto. O domingo se esvaindo. A televisão desligada, mas lá dentro Patrícia Poeta e Zeca Camargo devem estar falando das coisas de sempre. Talvez alguma novidade mortal. Talvez alguma banalidade mortal. Estarão fazendo enquetes? Será que alguém conhece alguém que responde as enquetes do Fantástico. No Msn, nove amigos online, eu offline. Por quanto tempo? Nos e-mails, uma fila enorme de respostas atrasadas. O gato está na rua, deve estar melhor do que eu.
O teclado. A tela ainda muito em branco. O fantasma, o fantasma. Na memória da semana, nada que mereça as páginas do jornal. Chamo André Breton, o pai do surrealismo, quem sabe ele me ajuda e me dá uma crônica surreal, mas não aparece, deve estar atendendo a outro poeta mais necessitado. Então, tenho de usar o recurso velho, terrivelmente nada original de falar do processo criativo, pior, quando o processo criativo não nasce normalmente, naturalmente.
O teclado. A tela já não tão em branco. Se eu deixasse para amanhã. Ainda dá tempo. Penso no leitor, nesse abnegado leitor que já deve ter desistido de chegar até aqui. Penso mais naquele que por algum motivo (fidelidade? necessidade? curiosidade?) chegou até aqui e eu nada lhe disse, nada lhe acrescentei, além das agruras da falta de assunto. O problema é que amanhã, o dia todo será ocupado. À noite também. É agora. Tem de ser agora.
O teclado. A tela quase cheia de caracteres, mas, e o assunto? O fantasma branco da falta de assunto venceu? Ainda dá tempo. Amigos me falaram dos desmatamentos dos morros na cidade. Tema bom, atual: meio ambiente x progresso. Carlos Minc x Luiz Henrique da Silveira. Mas não fui ver os estragos nos morros. Quero me indignar bastante antes de escrever sobre isso. Falo sobre os carros dos nobres vereadores? Já passou. A passeata gay na Germânia operária? Vai passar. O fato de eu ser um professor do turno intermediário? Passará algum dia?
O teclado. A tela já preenchida de vazio. O gato chegou das suas andanças. Ainda não terminei a crônica. Talvez um poema. A voz de outro para fechar e dar pelo menos alguma coisa ao leitor além dos meus vazios, além da chatíssima falta de assunto. Carlos Drummond de Andrade, ao começar uma crônica sobre a falta de assunto, escreveu algo triste e verdadeiro.
Compartilho com o heroico leitor que atravessou até aqui este meu deserto, um oásis drummondiano: “Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora, a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário”.
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