A MÁQUINA DO MUNDO
Nada como uma pesquisa histórica para entender como a “máquina do mundo” anda e sempre deixa para trás certas bobagens. Claro que há todo um saudosismo latente, sobretudo agora, que estamos mergulhados em um caos sem precedentes, mas isso é assunto para as grandes discussões filosóficas. Trago aqui as menoridades, dois detalhes anônimos que nunca foram protagonistas da história, mas que servem para entender que jamais seremos estáticos nos conceitos, principalmente os que envolvem linguagem e comportamento.
Pesquisando sobre os Diálogos de Platão, descubro uma edição de 1954, traduzida diretamente do grego por Jorge Paleikat. A publicação traz notas de rodapé muito informativas escritas pelo próprio Jorge e pelo colaborador João Cruz Costa. Uma delas, escrita por João Cruz Costa, chamou-me a atenção porque acrescenta uma opinião, ou quase uma justificativa, pelas alusões explícitas à homossexualidade, bastante comuns na Grécia antiga. Eis partes da longa nota: “Causa-nos estranheza a importância e escandaliza-nos a displicência com que os gregos tratam do amor entre os indivíduos do mesmo sexo. (...) Esse desvio lamentável que a nossa natureza repudia parece ter sido um produto da vida nômade dos dórias”. O nosso amigo João Cruz Costa atribui o fato de os gregos antigos terem seus amantes, e portanto cederem a “esse asqueroso desvio da natureza”, à vida na caserna. Eu, claro, ri muito com isso. Sem querer, ele atribui ao “macho” exército a culpa por fomentar atividades homossexuais. O interessante é que esse tipo de nota, hoje, jamais passaria pela cabeça de alguém, por mais conservador que fosse. É a máquina do mundo andando.
Outro exemplo vem de um livro que eu comprei nem sei mais onde, mas que é uma preciosidade anacrônica. Trata-se de “Estrangeirismos”, de Cândido de Figueiredo, uma edição de 1921 em que o autor português enumera e ataca centenas de “vocábulos e locuções estranhas, indevidamente usadas em nossa moderna linguagem oral e escrita”, conforme palavras do próprio. A maior parte das expressões é em francês, mas encontra-se também o espanhol e, claro, o nosso amigo-irmão inglês. O divertido desse livro é verificar quais expressões venceram o ódio do senhor Cândido de Figueiredo. Seleciono três, com as opiniões do português:
Garçom: “Portanto, quem por hábito ou francofilia prefira o garçon ao criado ou moço, tem um meio legítimo de amar o francês, sem desamar o português: é servir-se do garção. E não lhe devo nada pelo conselho.”
Omelete: “A culinária francesa exportou isso para cá, e teremos de aguentar a exportação, mas sob condição de lhe darmos forma portuguesa. Essa forma é omeleta. Assim, passa; e até parece que tem melhor sabor...”
Nuance: “Nuance é pecado mortal contra a língua portuguesa. [...] e quem deseje isentar-se de culpa, tem de recorrer a termos nossos como gradação, meias-tintas, claro-escuro.”E assim prossegue o senhor Cândido de Figueiredo.
Fico imaginando-o como uma reencarnação do Aldo Rabelo, o famigerado deputado que quis, via lei, proibir estrangeirismos. Aos Cândidos e Jorges e Joões da vida atual, um aviso: a máquina do mundo anda mais rápido do que vocês podem alcançar.
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