"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/5/2010
(próxima coluna: 26/5/2010)


CRÔNICA DE GATOS

                         O primeiro chegou ao acaso. Pequeno, miando, sem estirpe nenhuma que o identificasse. Abandonado, fugido, nunca soube direito de onde veio. Resolvi ficar com ele. Nunca tinha tido gatos, apesar de gostar muito deles, mas aquela imaturidade constante que sempre me perseguiu não havia me permitido criar algo, seja planta, bicho ou gente. Mas como esse primeiro aconteceu, resolvi crescer. Ele cresceu também. Eu o chamava de Osman, em homenagem ao escritor Osman Lins. Ficou comigo um ano e pouco. Vida breve para um gato. Mimei demais, talvez por isso não tenha sido ágil o suficiente para escapar do atropelamento. Depois disso, pensei: melhor ser imaturo de novo, afinal meu primeiro bicho de estimação vive menos de dois anos. Azar, destino, carma. As explicações são várias, só sei que Osman era um gato temperamental, deliciosamente tarado, apesar da castração.
                         Já estava me acostumando com a idéia de não ter mais gatos: falta de tempo, fico muito fora de casa, moro próximo da BR. As desculpas pululavam, a melhor de todas era: quando encontrar um gato abandonado eu pego. Partindo do princípio que gatos são animais que jamais perdem a dignidade ao ponto do abandono, seria difícil encontrar um gato, como se encontram cachorros e humanos, em petição de miséria. Só que lá vem o destino conspirar novamente. Amiga me telefona e diz: “eu tenho um gato pra você. Você ainda quer?” Lá vai o imaturo crescer à força de novo. Lá vou, (paradoxalmente, com aquela alegria infantil diante dos animaizinhos) buscar o gato. Não era tão pequeno quanto Osman, um pouco mais nobre, pois se percebe sua linhagem siamesa. Está há uma semana comigo. No segundo dia, não, no primeiro dia já era o dono da casa e eu é que agora sou seu bicho de estimação. Quem tem gato sabe dessa condição e se sujeita a isso com toda a alegria do mundo.
                          Novamente um gato silencia minha casa, poetiza meu espaço. Novamente um gato cresce diante dos meus olhos e cabe a mim protegê-lo e dar nome, tarefa complicada. Quero um nome literário, claro. A princípio vou só chamá-lo de gato, dissecar um pouco mais sua personalidade e ver qual persona literária pode servir para ser seu nome. Até lá, vou satisfazendo seus desejos, me preocupando a cada sumida. Por enquanto ele não descobriu o mundo externo, mas gatos, assim como os filhos, crescem e não podemos deixá-los presos. Espero que esse fique mais tempo comigo, envelheça comigo. Que eu não saiba de sua morte como soube a do primeiro: prematuramente. A morte é sempre tão ofensiva à superioridade dos gatos.
                         Faço essas digressões olhando para ele, que não faz digressões, vive apenas, na inteireza de sua animalidade. Eu sei que terei um ano de complicações pela frente: trabalho, estudo, por isso vai ser bom olhar para meu gato ainda sem nome e aprender a sua delicadeza, a sua poesia completa completando os meus dias.

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