Coluna de 2/4/2009
(Próxima coluna 9/4/2009)
Contra fatos não pode haver conjecturas
Desembargadora reclama de excesso de condicionais em sentença judicial
Quis Deus Nosso Senhor que este artigo seja publicado aqui em 1º de abril, o dia da mentira, no qual, desde eras imemoriais, pregam-se peças e se dão sustos em amigos, abandonando-se os rígidos cânones da verdade absoluta. Não cabe a este limitado e inculto cronista de costumes políticos invadir aqui nem a seara antropológica de Roberto DaMatta nem a área psicanalítica do terapeuta Flávio Gikovate, entrevistado por Sonia Racy para o Caderno 2 de anteontem. A mentira, lembrou este, é “um óbvio sinal de inteligência da criança”. E, da mesma forma como pode ser uma demonstração de mau caráter de alguém que a utiliza para se dar bem, levar vantagem, como rezava a Lei de Gérson, também tem um lado bom. A chamada “mentira piedosa” facilita tudo, porque “as pessoas não gostam de ouvir a verdade”, disse Gikovate.
Os anglo-saxões têm obsessão pela verdade, certamente porque a prosperidade de uma sociedade depende do cumprimento dos compromissos pelos contratantes. Sem dúvida, um dos índices mais reveladores da higidez de uma economia é o da inadimplência: quanto mais alto este for, menos confiável aquela é. Nós, latinos, somos mais compassivos com quem mente ou com quem deixa de honrar um compromisso, até por nos considerarmos mais ladinos. A mentira pode ser um “instrumento da inteligência humana”, como explicou o psiquiatra ouvido por Sonia. Mas isso só se aplica à vida privada, nunca à vida pública, que deve primar mais pela transparência que pela cortesia. Sem hipocrisia não há relações sociais, mas, aplicada na gestão pública, ela provoca desastres. Autor e leitor seriam hipócritas, contudo, se não reconhecessem que a prática política desmente e desmonta essa teoria a cada segundo. O cidadão está condenado a ouvir mais mentiras de seus representantes ou governantes que de seus cônjuges.
Mais nefasta que a negação da verdade – admitida em forma de silêncio como elemento de defesa no Direito, desde sempre (é clássico o conceito de que ninguém é obrigado a confessar a verdade, se isso lhe for prejudicial num processo) – pode ser a verdade pela metade. A chamada meia-verdade tem sempre o efeito maléfico de uma mentira e meia. Pois esse estratagema de se apropriar de parte de um fato para convencer ou prejudicar outrem, de maneira maquiavélica, produz efeitos mais danosos à vítima que o impacto da grosseria de uma verdade dita de forma abrupta e em hora imprópria e também que uma maledicência cheia de veneno.
Pior ainda que a meia-verdade é a conjectura – alguém imputar a outrem algo que pensa que fez (ou até sabe que não fez) para tirar vantagem disso. A difamação pela conjectura é uma velha tática política de desqualificação do adversário para lhe tomar o poder, subjugá-lo e, por fim, esmagá-lo. Mestre consagrado nessa arte foi Josef Stalin, que conseguiu a proeza de fazer com que, em nome de ideais comuns, antigos companheiros, tornados desafetos nas disputas internas pelo controle do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), confessassem crimes que não cometeram, mas lhe foram atribuídos pelo tirano.
A prática stalinista da submissão do oposto por sua difamação tem sido usada com frequência em nosso país. O procurador Luiz Francisco de Souza ganhou o apelido do frade queimador de bruxas da Inquisição Torquemada pela devoção com que se dedicava à destruição de reputações, inspirando-se mais nas próprias convicções ideológicas que nos fatos. Hoje seu nome repousa em merecido ostracismo, mas o santo ofício a que se dedicou ainda tem seus prosélitos. Conjecturas motivaram as denúncias de “corrupção grossa” de ilustres próceres do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) contra a cúpula das telecomunicações no governo federal tucano. Quem nelas se inspirou mereceu críticas certeiras do juiz federal que absolveu os responsáveis pela privatização das telefônicas, porque nunca se esforçaram para provar o que delataram. Apesar da sentença histórica, também não faltaram expressões condicionais no relatório do delegado Protógenes Queiroz sobre as práticas heterodoxas do banqueiro Daniel Dantas.
Protógenes foi afastado da investigação, mas pode ser que não tenha sido um caso isolado na Polícia Federal, a julgar pela decisão da desembargadora Cecília Melo, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª região, de mandar soltar sete presos – cinco diretores e duas secretárias da empreiteira Camargo Corrêa. Sem medo de contrariar os “idiotas da objetividade”, que estão sempre prontos para conjecturar sobre a suspeição das decisões da Justiça de mandar soltar protagonistas das espetaculares operações da Polícia Federal, ela teve o cuidado de pinçar da sentença do juiz Fausto De Sanctis (o mesmo que condenou Daniel Dantas à prisão) o uso exagerado de verbos, advérbios e adjetivos condicionais em frases que exigiam substantivos afirmativos: “teriam sido; supostas; poderia estar havendo; poderia; suposto; eventual...”
O despacho com que a desembargadora concedeu o habeas corpus aos acusados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, com prisão ordenada pelo juiz, não os exime preliminarmente de culpa. Ela apenas, no cumprimento estrito de sua função judicante, exigiu tanto dos investigadores quanto dos promotores que apresentassem provas, e não meras hipóteses. Não cabe aqui discutir se os presos cometeram ou não delitos, mas, sim, lhes garantir o mesmo benefício da dúvida pelo qual o presidente Lula tanto se bate quando se trata de julgar e prender os réus do “mensalão”, por exemplo. Se cometeram crimes, têm de responder por eles. Cabe aos policiais e aos promotores investigá-los e mandar fatos, e não conjecturas, para a Justiça resolver se deve puni-los com penas proporcionais aos delitos comprovados.
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