Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
Coluna de 4/6/2009
(Próxima coluna 11/6/2009)
No sertão, chuva mata mais que seca
Os donos do poder no Nordeste e o governo federal não percebem que a maior tragédia do semi-árido não é a seca, mas a incapacidade crônica de armazenar a água das trombas
Sempre que ocorre uma tragédia como a de quarta-feira passada - a inundação de dez povoados piauienses sob as águas da represa de Algodões I, cuja barragem não suportou o volume de águas inesperado para esta época do ano no interior do Nordeste - os idiotas da objetividade de Nelson Rodrigues apontam com o dedo acusador para o imponderável. A culpa é de São Pedro ou, quem sabe, do Sobrenatural de Almeida, como antes foi de Tupã. Choveu demais e autoridade nenhuma pode ser, em sã consciência, inculpada por índices pluviométricos. Seria trágico, se não fosse cínico.
No caso de Algodões I, no momento específico, mas ao longo da história, bastante comum no sertão nordestino, há elementos para mostrar que houve falhas na construção da parede da represa. E, depois, negligência na hora de adotar providências para evitar a tragédia que seria provocada por seu rompimento. A notícia de que, há um ano, a barragem era considerada de risco e vinha tendo fissuras controladas com injeção de cimento é terrível, mas não é incomum. A informação nem pode ser atribuída a alguma “intriga da oposição”, pois ela foi dada pela presidente da Empresa de Gestão de Recursos do Piauí (Emgepi), Lucile de Souza Morais, que mandou fazer a primeira aplicação em junho do ano passado. A situação era tão preocupante que o governo do Piauí se viu forçado a contratar, em outubro, a consultoria Geoprojetos para avaliar a obra. A reconstrução total do maciço, com adição de argila, e o aumento do sangradouro foram recomendados, mas nunca feitos.
O mais grave de tudo é que, há 20 dias, os consultores advertiram ao governo piauiense que os moradores da área deveriam dela ser retirados. Não seria fácil fazê-lo, conforme demonstram as vítimas de deslizamento nos morros das grandes cidades brasileiras, que preferem arriscar a vida, vindo a perdê-la na enxurrada, a ter que mudar. Mas a verdade é que o governo do Piauí nem sequer tentou, preferindo agora, depois da tragédia consumada, atribuí-la aos desígnios da Providência.
As autoridades brasileiras não conseguem aprender com os próprios erros. De tanto explorar a indústria da seca, os donos do poder no sertão nordestino não têm o menor traquejo para utilizar a emergência contra enchentes em benefício próprio. Por não perceber que o drama do semi-árido não é só de escassez, mas de incapacidade de armazenar a água caída em trombas, o Estado dedica-se à demagogia rasteira da transposição do Rio São Francisco, em vez de lidar de forma sistêmica com os caprichos pluviais da região. Daí, sua reação errática aos temporais, menos frequentes, mas mais letais que as estiagens.
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