"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/7/2010
(próxima coluna: 26/7/2010)


Cantar é um atravessamento

Cantar é um atravessamento. A voz molda-se na garganta e atravessa, plena, quem ouve e quem canta. Cantar, mais do que falar, é o que redimensiona o humano, pois não é apenas emitir com a voz sons ritmados e musicais, conforme uma das acepções no dicionário, cantar é mais, preenche poros, ouvidos, olhos, nariz, língua e pensamento. Há em quem ouve o canto uma espécie de submissão, de entrega à música vinda de outro corpo. Por outro lado, quem canta e sabe o poder que tem, manipula-se e manipula o outro com a voz. Desde tempos imemoriais é assim, quando cantar aparentava-se com o transcender, com o ascender aos deuses e conseguir deles benefícios para uma vida melhor. Resquícios desse trânsito, desse caminho às alturas ainda permanecem nos corais, nos mantras, nos cânticos de louvor e, sobretudo, em algumas vozes, tão místicas que mais se assemelham a um vôo, um vôo abissal em direção a Deus.

Quem canta parte-se em fios, como na canção de José Miguel Wisnik e Paulo Neves: “Porque sou dois / Sou mais que dois / Sou muitos fios / Que vão se tecendo / Com a voz do outro em mim / E quem canta não sabe o fim / Com medo e alegria / Ele anda por um fio.” Não apenas quem canta, mas tudo ao seu redor, tudo passa a ser um tecido de música, a ser um só corpo que desconhece o fim porque está amparado no canto. Talvez por essa malha de fios, por esse atravessamento, cantar me pareça ser tanto um ato feminino. Homens arriscam-se, alguns até expõem de forma completa a sua ânima, seu feminino de dentro no canto, mas uma mulher cantando está além da fronteira do entendimento, os pés estão fincados naquele instante das grandes transformações, no momento em que o grão de areia machuca a ostra, em que a gazela atinge o faro do leopardo, em que o olho, muito mais do que ter visto a estrela cadente, sonha em vê-la. Cantar é estremecer, expor a pele interna das emoções. Mulheres sempre me pareceram mais aptas a isso. Posso cair em superficialidades ao afirmar tal ideia sem nenhuma base científica ou estética, mas me amparo nos mistérios da fé: a minha fé no cantar me diz que ele é todo ânima, é todo fêmea, curva e adentramentos. É nisso que creio, é isso que busco quando ouço alguém cantar e, na maioria das vezes, só consegui encontrar numa voz feminina.

Cantar é um pertencimento àquela voz. Dentro de mim o canto mastiga, digere, salmodia meus sonhos, desejos. Dentro de mim, o canto inaugura cantos desconhecidos, joga luz sobre escuros impronunciáveis. Revela-me. Toda vez que sou atravessado pelo cantar de uma mulher, há um desnudamento, mesmo que ela cante algo que não me atinja diretamente, só o cantar, só o pronunciar as notas já bastam para que eu, como meus ancestrais de antes do tempo, consiga atingir o Incorpóreo Sem Nome.



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