JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 22/1/2010
  (Atualização quinzenal)

O fantasma da vingança espreita a sucessão

                      Será o 3º PNDH uma retaliação dos vencidos na guerra contra a ditadura?

A polêmica provocada pelo decreto criador do 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) mostra que ainda não acabou a cesura que remonta às origens do Partido dos Trabalhadores (PT) sobre a natureza da democracia pretendida por seus militantes. Será a clássica democracia burguesa de controles e contrapesos exigidos pelos Pais Fundadores da Revolução Americana de 1783 com a adoção de três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) autônomos e soberanos, fórmula do francês Montesquieu? Ou a direta, a ser exercida por consultas permanentes à cidadania por plebiscitos e referendos e por conselhos compostos por delegados (neste debate se tem lembrado que soviete significa conselho em russo)? A diferença entre as duas é que a primeira é obviamente imperfeita e a segunda impossível de ser praticada, tal como define seu significado semântico, conforme disse o cientista político Leôncio Martins Rodrigues em entrevista a este jornal, domingo.

A dúvida traz outra à baila: será a eleição dos mandatários do Executivo e dos representantes do cidadão no Legislativo o momento crucial do exercício do poder pelo povo, como determina a Constituição (no caso do Brasil, mais do que isso, pois nossa democracia é exclusivamente eleitoral), ou apenas um pretexto para galgar o poder e de lá submeter a Nação às próprias convicções? A resposta a essa pergunta é fundamental neste momento em que o País se prepara para viver a sexta escolha direta do chefe do Poder Executivo desde a substituição do acordo negociado na cúpula para a extinção do regime autoritário e sua substituição por um Estado Democrático de Direito, nos moldes definidos na velha democracia burguesa. Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto impulsionado por duas votações que manifestaram a inequívoca vontade da maioria do eleitorado de vê-lo no poder. Seu talento inato para se comunicar com o cidadão comum o tornou o mais popular governante do Brasil desde Tomé de Souza e com parcas chances de vir a ser superado nisso, a julgar pelos quadros atuantes na política e na gestão pública.

Lula fez-se conhecer como dirigente sindical desatrelado do peleguismo no controle da organização dos trabalhadores pelo PTB de Getúlio Vargas e do anarcocomunismo que dirigia o sindicalismo antes das greves do ABC, nos anos 70. Incorporou-se à tradição conciliadora que moldou o estilo de importantes homens públicos brasileiros: dom Pedro II, Bernardo de Vasconcelos, Getúlio Vargas e Tancredo Neves. A primeira conciliação, mercê de seu talento para o ecumenismo, deu-se já na fundação do PT. Antes, dizia-se que a esquerda brasileira só se unia na cadeia. Sob sua égide, se reuniram egressos de grupos guerrilheiros de posições inconciliáveis com líderes sindicais apartidários (caso dele próprio) e a esquerda católica, dividida entre políticos “progressistas” da democracia cristã e militantes da Teologia da Libertação, em comunidades eclesiais de base e pastorais.

O tão decantado carisma de Lula e sua habilidade de milagroso domador dos gatos desse incrível saco foram insuficientes para levá-lo ao poder e à glória de agora nas três tentativas que fez antes de chegar à Presidência – a primeira contra Collor e outras duas contra Fernando Henrique Cardoso. O milagre da ascensão ao topo do poder só foi possível com a segunda conciliação, fruto de seu oportunismo e iniciada com o abandono do programa socialista, que unia apenas os três grupos originais do PT, e a adoção de um discurso de austeridade fiscal e combate à inflação da era pós-Palocci. O desgaste dos laços que atavam o saco de gatos amarrado pelos pretensos social-democratas sob Fernando Henrique permitiu a Lulinha Paz e Amor promover a segunda e ainda mais bem-sucedida conciliação com a escória da velha política brasileira, que os petistas de antanho chamavam de “isso que está aí”. A reverência que o atual presidente fez ao ex Sarney, ao evitar a degola dele na presidência do Senado, teve natureza simbólica, pois a certeza do clã maranhense de que o candidato tucano à sucessão de Fernando Henrique, José Serra, tivera papel decisivo na perseguição à herdeira do chefão, Roseana, no episódio da descoberta de dinheiro vivo em seu comitê eleitoral foi determinante para a desistência da candidatura por ela. E a senha oportuna para a velha plutocracia mudar de palanque, como agora para beijar a mão da guerrilheira aposentada Dilma Rousseff.

É claro que a fisiologia descarada só se curva hoje à Utopia derrotada na guerra suja, mas vitoriosa no confronto ideológico, seja com a direita que desabou junto com a ditadura, seja com os liberais da pusilânime aliança PSDB-DEM, porque não quer largar o osso do poder. Nisso, aliás, imita o mais poderoso, Lula, que quer eleger a chefe da Casa Civil na convicção (talvez ilusória) de que será conviva de honra dos banquetes da fortuna e da glória depois da posse de quem lhe suceder.

Há, contudo, entre o criador e a criatura mais diferenças do que pode supor sua débil filosofia. Uma delas é que, por menos que saiba disso, o matreiro Lula ajudou a derrubar o autoritarismo de cima do palanque do Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, tornando-se, com todas as honras, herói desta democracia que está aí, por mais imperfeita que ela possa ser. E a guerrilheira desalmada e desarmada participou de um processo de enfrentamento militar que só prolongou a longa noite dos porões. E, depois, penetrou no centro das decisões no vácuo do chefe. Isso induz democratas assustados a imaginar que o 3º PNDH  seja um programa de vingança a ser realizado em seu eventual, embora provável, futuro governo. Enquanto ela não esclarecer isso com todas as letras, este fantasma que reabre feridas já cicatrizadas faz tempo continuará a nos espreitar.

______________

Colunas anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 4445, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116 , 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125126, 127, 128, 129, 130 , 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 , 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176 , 177, 178 , 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194 , 195, 196, 197, 198, 199 , 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212 , 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232

« Voltar