"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA

Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/12/2010
(próxima coluna: 9/2/2011)


OS CINCO SENTIDOS

A vida é um poço de sensações, um arcabouço de sentires. Somos um corpo captador do sentir. Nada a ver com o sentimento. Coisas como amor, saudade, alegria, felicidade, são internos, conceitos, abstrações, quase uma consequência do que vivemos, fazemos, escolhemos, apesar de muita gente considerá-los o fim, o ponto para onde devemos encaminhar a vida e um dia lá chegar. Tais pessoas desconhecem que estes sentimentos geralmente são o caminho, o processo, o durante.

Porém, falo aqui de algo mais físico: o corpo e seus cinco sentidos, suas portas abertas para captar o mundo. A vida cotidiana atenua, acostuma, dá uma certa opacidade aos sentidos. Os mesmos barulhos matutinos, a mesma rua percorrida cegamente, o mesmo locutor toda o meio-dia nos impingindo verdades definitivas, o mesmo café com duas colheres de açúcar, o pão de ontem, o banho de cinco minutos, o mesmo motorista de ônibus, o mesmo pedestre atravessando a faixa, a mesma cadeira no trabalho, os gestos automáticos, as respostas automatizadas que damos, os filhos e seus boletins falhos, a novela, o sexo de luz apagada, o sono sem sonhos. A rotina tem o poder de embotar os sentidos, talvez por isso manifestamos alguma raiva dos pequenos desvios: acidentes, tropeços, desencontros, surpresas. Somos invadidos, de repente, pelo choque de termos os sentidos de novo ligados, atuantes, plenos no seu fazer, e não como trabalhadores adaptados demais, desmotivados demais.

Assim, os sentidos são despertos quando saímos da rota, quando deslocamos nosso corpo a um espaço desconhecido, um espaço que nos exige a atenção, a percepção novamente viva. Pode ser no dia a dia, mas isso exige uma dose de vontade, um esforço extra para deixar que o acaso, a beleza, o inesperado nos lustre os sentidos, ou quando acontece de viajarmos. Aí não temos escolha, quer dizer, temos a escolha de atenuarmos as surpresas, de seguirmos as rotas oficiais, de ouvirmos apenas o guia, de comermos apenas nas franquias conhecidas e globalizadas. Geralmente quem faz isso retorna muito parecido a como saiu. Nada acrescentou aos sentidos, não fez com que eles brincassem num lugar diferente.

Ou temos a escolha de nos permitirmos alguns dias de pedestre perdido, de sujeito andarilho nas esquinas que se desconhece. Podemos deixar o olfato bem aberto aos cheiros do lugar, sejam perfumes ou catingas. Também podemos ouvir o rugir da cidade de dentro dela, passear com olhos abertos às pequenas filigranas da vida: um cão na janela, uma escultura quebrada, a mulher sentada no banco da igreja, tartarugas ao sol. Podemos ver também as outras pessoas que não estão viajando, como elas se comportam, como elas são nosso reflexo quando estamos cheios de rotina e temos os sentidos bem adestrados.

Não que eu defenda que a vida deva ser uma viagem constante, uma ausência de lugar fixo, nem acredito muito na morte da rotina como fórmula da plenitude dos sentidos, mas defendo que cada pessoa deva ter mais cuidado, mais delicadeza com esses canais físicos que nos fazem absorver a vida. A poesia da vida.


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