JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 25/2/2010
  (Atualização quinzenal)

A impermeável leveza de Lula

Livro de Audálio Dantas faz mais justiça ao protagonista que filme de Barreto

Os adversários de Luiz Inácio Lula da Silva acham que ele é dotado de teflon, ou seja, que nada da sujeira que seus apaniguados produzem, ou que lhes é atribuída, macula sua lapela impecável. Mas nem a impermeabilização do mais hábil governante brasileiro desde o desembarque de Tomé de Souza na Bahia escapa à ironia da História. Comprovam-no as vítimas do golpe dos camelôs que vendem o falso DVD do filme Lula, o filho do Brasil , de Fabio Barreto. A capa reproduz o cartaz da produção do clã Barreto, preparada para ser a maior bilheteria de “nunca antes na história deste país”, com a estrela Glória Pires no papel da mãe do líder, dona Lindu, versão feminina de Confúcio no agreste. Mas, ao ser posto para tocar, o DVD não reproduz a fita pretendida, e, sim, O ABC da greve , de Leon Hirszman, sobre a greve dos metalúrgicos de São Bernardo, que ajudou a corroer nas bases a ditadura militar. Haverá ironia maior que comprar a versão pirata de uma falsificação e levar um documentário autêntico e bom?

E esta não é a única ironia da História ao lidar com um fenômeno de comunicação que sepulta bem intencionados e os conduz ao Inferno, conforme máximas atribuídas aos sábios do povo, sintetizados no filme em dona Lindu. Com o filho dela “bombando” nas pesquisas de popularidade, ao atingir 82% no segundo mandato, qualquer um preveria um êxito de matar Xuxa e Renato Aragão de inveja nas bilheterias de cinema do País. Só que a pule de dez começou sua trajetória de arrasa-quarteirão como se fosse um traque junino num copo d'água.

Uma coisa nada tem que ver com a outra por várias razões, sendo uma das mais fortes delas a evidência de um ingresso de cinema custar R$ 18,00, enquanto o voto, além de obrigatório, ser gratuito. Resta, porém, a lição fundamental para os oportunistas que imaginavam transformar o carisma pessoal de Lula em fonte inesgotável de lucro de que, para fazer sucesso como o verdadeiro, o Lula do cinema teria de, pelo menos, se assemelhar um pouquinho mais ao real do que aquela mistura improvável, levada à tela, de herói revolucionário realista socialista com galã de favela. O presidente chegou ao auge da popularidade graças a uma receita equilibrada de defeitos e virtudes, similar à matéria de que são feitos os eleitores brasileiros comuns, particularmente os do segmento mais pobre e inculto da população, e bem diferente do protagonista do filme, sem defeitos, mas sem charme.

Melhor fariam os espertinhos que produziram a decepção cinematográfica do verão se não tivessem escolhido como base a tese, de constrangedora ingenuidade, de Denise Paraná, relançada em livro, com modesto êxito comercial. Mas, sim, um texto que capta o melhor que há no encanto e no charme - que nem os mais ferrenhos adversários negam - da “história do pequeno retirante que chegou à Presidência da República”. O livro O menino Lula , de Audálio Dantas, ao contrário da fita canhestra de propaganda política do clã Barreto, faz justiça ao protagonista e ao povo brasileiro, que caiu de amores por ele desde que nele viu a chance de assumir o mais alto poder da República sem a intermediação dos bacharéis de antanho. A saga do moleque a quem o pai bruto negava os picolés oferecidos aos meios irmãos, alegando que ele não saberia chupá-los, narrada por um escritor de talento e ilustrada por um excepcional xilogravador, Jerônimo Soares, filho do “poeta repórter” José Soares, convence o cidadão comum de que este não precisará se esforçar muito para transportar nos ombros outro igual a ele, como no hit pop He ain't heavy, he's my brother (Ele não é pesado, é meu irmão , de Bobby Scott e Bob Russell, sucesso dos Hollies).

O autor de O menino Lula busca em cenas comezinhas do cotidiano as bases da identificação que o político do futuro teria com o cidadão comum. Ele mesmo egresso de Tanque d'Arca, no sertão também nordestino de Alagoas, o repórter brilhante de sempre não trouxe a lume notas brilhantes do futuro gênio, mas dificuldades sofridas em família sob a égide da mãe, não uma pretensa filósofa da aldeia, mas uma mulher escolada na necessidade de nutrir na escassez.

Quem de nós não se emociona com a lembrança do desvelo paterno quando a criança se feriu numa caçada a dois, um carinho tão raro no brutamontes que até hoje o filho destaca como a evidência de que do pai não recebia só pancada e bronca? Quem não identifica o afeto filial, sempre carregado de alguma censura, na recordação do estivador analfabeto lendo o jornal de cabeça para baixo?

Há mais explicações para a importância alcançada pelo protagonista nesses corriqueiros “causos infantis” que em toda a discursalhada pseudo-épica dos áulicos palacianos e dos pequenos burgueses seduzidos pelo charme proletário do pau-de-arara que subiu a rampa do poder. O livro de Audálio encanta porque ele vai buscar na infância as evidências da leveza de Lula. O filme de Fabio é pesado demais para ser carregado por nossa pobre gente débil, que prefere belas histórias reais a mentiras sem pé nem cabeça da luta pelo poder.

______________

Colunas anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 4445, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116 , 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125126, 127, 128, 129, 130 , 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 , 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176 , 177, 178 , 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194 , 195, 196, 197, 198, 199 , 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212 , 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234

« Voltar