JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 13/9/2011

Um menino quieto tomando Cinzano

Conheci Francisco de Sales Gaudêncio no começo dos anos 60 do século passado. À época, dona Mundica, minha mãe, ouvia O Direito de Nascer no rádio a bateria de automóvel, idêntica fonte de energia da geladeira, que não podia ficar muito carregada senão os víveres, expostos à canícula sertaneja, apodreciam. Meu pai, Anchieta, me trazia em seu caminhão exemplares da Gazeta Esportiva, com a coluna O personagem da semana, de Nelson Rodrigues. Ou seja, faz tempo. Ah, se faz!

Quando papai chegava de viagem, trazia também os fascículos da novela do rádio, protagonizada por Isabel Cristina e Albertinho Limonta, para preencher as lacunas feitas pelos diálogos perdidos por culpa da estática. O rádio era novo. O velho tinha sido quebrado pelo temperamental dono da casa: ouvíamos o jogo final da Copa do Mundo de 1958 e ele acertou um murro que partiu o aparelho ao meio no primeiro gol da Suécia. Ficamos sem saber dos cinco gols que dariam o título ao nosso escrete canarinho por culpa do ímpeto raivoso do velho, que então ainda era muito moço. Nenhum aparelho era confiável. Zé Barros, pai de Cristóvão Barros de Alencar, contemporâneo de meu pai e depois cantor e disc-jóquei de grande sucesso em São Paulo, era famoso por ser o primeiro a saber das últimas. O rádio do velho Zé Gualberto era o menos confiável de todos. Padre Anacleto, o vigário, perdeu a paciência por tantas terem sido as vezes que teve de mandar dobrar os sinos pela alma do papa Pio 12, que teimava em não morrer. No aparelho do pai de monsenhor Luís Gualberto — de quem nosso protagonista seria secretário anos depois -, o bispo de Roma superou Cristo na arte de ressuscitar: não o fez uma única, mas várias vezes, até que a suprema autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana foi acolhida no seio de Deus e os sinos da Matriz de Jesus, Maria, José calaram, porque o pároco achou que era infiel o recado do fiel.

Cabrinha, o eletricista, ligava o conjunto de motor a diesel e dínamo às 6 da tarde que caía e, quando se fazia a luz, o cônego Antônio Anacleto tocava a Ave Maria de Gounod (sobre uma fuga de Bach) no alto-falante da matriz e recitava seu Ângelus dolente. A luz elétrica era desligada às 9, depois de três sinais, e a noite do sertão ainda caía na treva quando conheci Sales no casarão de minha bisavó Laurinda, tratada pelos descendentes como Mãe Inda, nas proximidades da nascente de um leito seco de areia que mentia no nome, Rio do Peixe, uma vez que, como ensinava minha coleção favorita de livros, O Tesouro da Juventude, não pode haver peixe onde não há água. À "fazenda", como todos chamávamos a casa do avô comum dos meus pais, o coronel Alexandre Pinto, não havia chegado a energia do motor de Cabrinha, pois eletricidade rural era uma miragem naquele ermo: não era viável levantar postes e esticar fios na extensão de légua e meia que separava o sítio onde nasci da cidadezinha onde morava.

Nas noites de breu do sertão, minha mãe nos recitava de cor versos do Navio Negreiro, de Castro Alves, entre os quais o que considero o melhor já escrito em português, "que a brisa do Brasil beija e balança", pegando a aragem da madrugada que vinha pelos costados. A fresca da noite era também a hora preferida por mim e pelo meu primo Eudésio para andarmos até a Fazenda Rio do Peixe, nascente do rio do mesmo nome e berço de meu clã. Ele morava com minha bisavó, uma prima mais velha que minha mãe, Maristela, que tomava conta da anciã, e tia Ana, que chamava a atenção pela extrema feiura. Esta tinha um olho no meio da testa e eu a achava parecida com o Ciclope, que povoava as histórias de Sinhá Benta no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, que meu pai trazia de São Paulo quando transportava cargas em seu caminhão Chevrolet Jandaia, com o qual lidava como se ele fosse sua amante favorita.

O que tinha de feia minha tia tinha de gente boa. Era doidinha por meu tio Alexandre Ferreira, irmão de minha mãe, criado teoricamente pela avó, costume antigo no sertão, mas, na prática, por ela e Maristela. Deixou-lhe toda a herança, que não era pouca. E ela também gostava muito de Sales, a quem chamávamos de "filho do padre". O Rio do Peixe ficava na comarca e no município de Uiraúna, que tinha sido distrito de Antenor Navarro, mas era da paróquia desta cidade, que se chamara e voltaria a ser denominada de São João do Rio do Peixe. O vigário era um velho sacerdote, padre Jácome, com quem o menino peregrinava. Quando passavam pela "fazenda", minha prima Stelinha preparava café forte, bolo de milho, pamonha e canjica. Padre e "filho" também apreciavam as talagadas de Cinzano que tia Ana lhes servia. À época, eu também era coroinha, só que de padre Anacleto, e furtava hóstias de latas decoradas com cartas de baralho, feitas pela velha Donária e dispostas sobre o armário da sacristia da Matriz de Jesus, Maria, José. O vinho devia ser uma surrapa, é claro, mas eu o sorvia com um prazer nunca repetido, apesar de toda a qualidade dos vinhedos de que se originavam os que andei tomando depois pela vida e pelo mundo afora. Mas tia Ana me sonegava o Cinzano que o padre deixava Sales tomar. Invejei muito o menino por isso. Mas por pouco tempo: da mesma forma que roubava o vinho das galhetas da paróquia, furtava a bebida doce e forte que a feia e gentil tia me negava.

"Madrinha" Stelinha, na verdade, madrinha de apresentar (no batismo) de dona Mundica e, por extensão, dos sete filhos desta, tinha uma coleção supimpa da revista O Cruzeiro. Impressionava-me muito o lenço com que seguraram o queixo de Getúlio Vargas depois de morto. Meu pai colecionava O Amigo da Onça, de Péricles, vai saber por quê. Afinal, se havia alguém que nunca fora amigo da onça de ninguém, era José de Anchieta Pinto. Padre Anacleto, segundo padre Jácome confiou a Sales, não era propriamente um gênio da erudição. Mas foi na biblioteca da Casa Paroquial de Jesus, Maria e José que encontrei os livros em que me embebi de vida de santos e literatura, tornando-me o que depois me tornaria, não sem antes frequentar um seminário. Passou um jesuíta em Uiraúna e eu me candidatei a passar frio na Serra de Baturité, no Ceará. Mas terminei mesmo foi estudando em Bodocongó, Campina Grande, com os redentoristas, gente muito ligada à pecúnia, e não à pecuária. Enquanto isso, Sales secretariava o cônego Luís Gualberto e aprendia História, na qual se tornaria bamba.

O "filho do padre" Jácome fez carreira de professor universitário em Cajazeiras e João Pessoa, passando pelo aprendizado no Recife. Sob a égide de Tarcísio Burity, que conheci à sombra das mangueiras da Casa de José Américo, em Cabo Branco, tornou-se servidor público de escol, aperfeiçoando-se no mister sob as ordens de José Maranhão. Eu me tornei operário da informação e das letras, primeiro em Campina Grande e depois no Sudeste, aonde arribei. Fizemos rotas desencontradas, paralelas, mas, felizmente, nos encontramos antes do infinito. Ele na Praia do Bessa, deixando-se refrescar pelos ventos alísios vindos do Atlântico. Eu do lado de fora dos muros de tijolo vermelho da vetusta Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, na Vila Buarque.

Somos produtos do mesmo barro seco. Egressos das barrancas arenosas do Rio do Peixe, aprendemos a beber água de cacimba e tomar banho em açude. Nas noites de breu da "fazenda" de Mãe Inda, ele ouvia a mesma cantiga da chuva no telhado e dos sapos no "açudinho", assim como eu escutava a mesma água bendita e o mugido das reses no curral do meu avô materno, o velho Chico Ferreira, em cuja casa vim ao mundo e à luz de cegar do sol sertanejo. Em comum ficou também o fato de termos ajudado à missa - ele mais amiúde, eu menos, mas também não tão menos assim.

O certo é que tivemos destinos opostos. Padre Antônio Vieira, não meu primo monsenhor, antecessor de Sales no comando da Secretaria de Educação do Estado da Paraíba, mas o imperador da língua portuguesa, já nos tinha definido quatro séculos antes de existirmos no "Sermão da Sexagésima". Eu, missionário redentorista, escapuli cedo de casa, fazendo escala em Campina Grande e no Rio de Janeiro para desembarcar às margens do Tietê dos bandeirantes, no Planalto de Piratininga. Ele, pároco secular, permaneceu leal à origem, cuidando do rebanho original, cumprindo, quem sabe, desígnios do "pai" Jácome, do cônego Luís Gualberto e do leigo Tarcísio Burity.

Reencontramo-nos na Academia Paraibana de Letras (APL), onde me instalei na cadeira em que já tomou assento nosso conterrâneo Waldemar Duarte. Submisso às ordens do major Jacob Frantz e aos afetos de dona Etinha, como se não estivesse na cadeira número 15 da APL, fundada por seu colega Celso Mariz, também originário do sertão do Rio do Peixe (no caso, Sousa), mas, sim, comendo coalhada no restaurante do hotel da estação termal de Brejo das Freiras, Sales não é, para mim, o professor nem o acadêmico, o secretário nem o cozinheiro exímio do bode guisado, artimanha que aprendeu com a mana Gau. É o "filho do padre" tomando seu Cinzano quietamente na sala de reboco caiado, ampla e cheia de fotos de homens barbudos e mulheres de colo pudicamente coberto, ainda estirado numa rede armada numa viga grossa, onde, segundo seu colega historiador, meu tio Quincas, o sisudo coronel Alexandre Moreira Pinto, avô deste e meu bisavô, amarrava os escravos para chicotear.

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