JOSÉ NÊUMANNE PINTO
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
Coluna de 14/4/2012
Maria Bonita
Rainha do cangaço, a companheira de Lampião ganhou um estudo da neta, Vera Ferreira
Trecho: “Tentamos ressaltar um olhar sobre Maria que nos conduz ao significado de uma mulher em um determinado contexto e período na história do Brasil”
Legenda: Aventura Ela tinha 19 anos quando saiu de casa para percorrer o sertão
Nascida e criada na Malhada da Caiçara, no sertão baiano, Maria de Déa foi destinada ao casamento, celebrado em plena adolescência, e a uma vida pacata. Aos 16 anos, casaram-na com o sapateiro Zé de Nenê, mas o lar do casal, que foi morar no povoado de Santa Brígida, ali perto, logo desmoronou, segundo as más línguas porque o varão era pacato demais para a inquietação fabril da mulher. Além do mais, o marido era estéril e a diferença de temperamento gerou conflitos que levavam o par a se separar e se reconciliar até o dia em que, no final de 1929, cruzou a soleira dos pais dela, Zé Filipe e Dona Déa, o temível Rei do Cangaço no sertão, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, aos 32 anos.
O chefe de bando era vingativo, cruel e destemido, mas também tinha lá seus laivos de herói romântico. Dos saques das fazendas dos ricaços do sertão furtava perfumes franceses de boa cepa e o melhor uísque escocês. Ao relento nos acampamentos no zigue-zague das fugas para escapar da perseguição policial, puxava um fole de oito baixos e a ele foi atribuída a autoria de um dos maiores sucessos do cancioneiro sertanejo e nacional, Muié rendeira, de cuja autoria se apropriaria, no Rio, o malandro Zé do Norte. Não era de estranhar que fizesse corte à morena e começou por lhe encomendar que bordasse suas iniciais CL (Capitão Lampião) em 15 lenços de seda, o que permitiu a abordagem e, depois, serviu de pretexto a novo encontro, que terminou com a retirada da morena separada do marido da casa dos pais. Foi, então, que a beleza da escolhida do Rei lhe deu a alcunha com que morreu na Grota do Angico, Sergipe, ao lado do amante, e que se fixou na memória do povo: Maria Bonita.
Expedita, filha do casal real da caatinga, criada no Estado em que os pais morreram, Sergipe, sobreviveu à carnificina e gerou, entre outros filhos, Vera Ferreira, que, professora universitária em Aracaju, tem mantido viva a memória dos avós e empreendeu obra de vulto para comemorar o centenário da avó. Bonita Maria do Capitão, livro trazido a lume pela Editora da Universidade do Estado da Bahia, lançado em São Paulo na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915), por R$ 100, é obra de fôlego O volume de 328 páginas, organizado pela neta, jornalista e escritora, com a cumplicidade da desenhista paraibana Germana Gonçalves de Araújo, reproduz o legado da personagem lembrada pelos caprichos e vontades, mas também pelo bom humor e descontração quase infantil, com esmero e bom gosto.
A aventura da menina que saiu de casa aos 19 anos para percorrer o sertão nordestino a pé num bando de cangaceiros até tombar, aos 27, humilhada a ponto de ter a cabeça, decepada quando ainda vivia, exposta à curiosidade popular, tem sido narrada em prosa, verso, imagem e som.
O casal, evidentemente, foi tema de muitos romances de cordel. Num deles, Sabóia, chamado de Marechal de Cordel do Cangaço, registrou: “Cupido fez passatempo / com Maria e Lampião/ ela Rainha ele Rei / governou nosso sertão / cangaço e amor viveu / não foi uma ilustração”. Rouxinol do Rinaré e Antônio Klévisson Viana versejaram: “Maria Gomes de Oliveira / amou muito a Lampião / decidiu ser a primeira / cangaceira do sertão / ignorando o destino / acompanhou Virgolino / pela força da paixão”. O livro reproduziu a capa de um cordel de Sávio Pinheiro sob título O arranca-rabo de Yoko Ono com Maria Bonita ou A desaventura de John Lennon e Lampião, editado em 2008.
Seu apelido famoso também foi muito cantado. “Acorda, Maria Bonita, / levanta pra fazer café, / que o dia já vem raiando / e a polícia já está de pé” - esta é uma estrofe de Muié Rendeira, que ou foi acrescentada depois ou se tornou, como mofou Bráulio Tavares em seu texto registrado no livro, o caso de premonição mais espetacular da história da música popular, de vez que o casal foi morto, de fato, ao amanhecer.
Seu nome também foi muitas vezes lembrado em funções de repentistas pelo sertão afora. Certa vez, Otacílio Batista glosou: “Virgolino Ferreira, o Lampião, / bandoleiro das selvas nordestinas / sem temer a perigo nem ruínas / foi o rei do cangaço no sertão, / mas um dia sentiu no coração / o feitiço atrativo do amor / a mulata da terra do condor / dominava uma fera perigosa. / Mulher nova, bonita e carinhosa / faz o homem gemer sem sentir dor”. Zé Ramalho pôs música nos versos e a canção virou tema da minissérie Lampião e Maria Bonita, na Rede Globo.
A beleza de Maria, mostrada em foto e cinema por Benjamin Abrahão, fascinou artistas plásticos como Mino e virou tema obrigatório de xilogravadores como J. Borges, Mestre Noza, J. Miguel e Marcelo Soares. Suas peças de vestuário e as joias que usava foram reproduzidas no livro, que também se refere à peça de Rachel de Queiroz sobre ela e a filmes do gênero dito nordestern que a adotaram como personagem. Como resumiu Maria Lúcia Dal Farra em poema: “Maria de Déa, Maria Bonita, minha Santinha! / Mulher de tantos nomes / tão poucos para contê-la”.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
Recriações
Artes plásticas
A permanência de Maria Bonita como personagem emblemática se fez presente nas diversas recriações feitas por artistas, reproduzidas no livro, como a retratada na xilografia de Humberto Araújo.
Cinema
A cantora Vanja Orico de Maria Clódia caracterizada como Maria Bonita no filme Lampião, o Rei do Cangaço , de 1964, dirigido por Carlos Coimbra, uma das muitas adaptações de sua história para a tela grande.
Teatro
Croqui do “vestido de caatinga”, feito pelo artista plástico Aldemir Martins em 2006 para a montagem da peça Lampião , escrita nos anos 50 por Rachel de Queiroz, encenada no Teatro Leopoldo Fróes, em São Paulo.
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