"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA

Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/8//2011
(próxima coluna: 9/9/2011)

A SEPARAÇÃO

Ela o conheceu ainda adolescente, no dia 5 de maio de 1985. “Nosso primeiro encontro é uma rima”, dizia: cinco de cinco de mil novecentos e oitenta e cinco. Ele era lindo, o mais lindo de todos. Tudo se encaminhou direito: namoraram, noivaram, casaram, construíram casa, tiveram filhos, e agora, 26 anos depois, ele sai de casa. Ele diz que cansou de ser casado, que cansou de ser marido, que não aguenta mais a vida que teve.

Olha-o assustada. Talvez nem tanto. No fundo, sabia. Desde que ele, aos poucos, foi deixando a vaidade que o movia de lado, foi perdendo os pequenos cuidados que tinha com a barba, os cabelos, as unhas, até mesmo os dentes. Ela tinha percebido alguma estranheza. Chegou até a perguntar, recebeu uma resposta enviesada. Em menos de um ano, o marido que causava inveja e desejo nas outras estava era causando outro tipo de comentário que sempre questionava qual o motivo do enfeiamento, o motivo para que ele, sempre tão boa-pinta, tão arrumado, estar agora praticamente em frangalhos. O pior não eram os comentários sobre o marido, mas sobre ela: o que ela andava fazendo que não resolvia isso? Qual o motivo que o levou a ter tal comportamento? Deveria ser culpa dela, claro, é sempre culpa da esposa, que não cuida direito do homem. Claro que ela também se sentia culpada, mas também queria saber o motivo, queria entender por que o marido tinha enlouquecido a ponto de enfeiar-se. Perguntou, brigou, implorou, seduziu, fez tudo ao alcance para entender o que o marido queria com a abnegação da vaidade. Só conseguiu dele mais silêncio, de vez em quando um olhar, como se pedisse: “me traduza, veja exatamente o que eu quero”. Como ela não conseguia, ele aumentava o enfeiamento.

Hoje, finalmente, soube. Ele queria se separar, não sabia como, não tinha um motivo mais nobre, então resolveu anular a beleza, os cuidados com o corpo, resolveu se anular para que ela o percebesse feio e com isso o rejeitasse. O marido se confessou um covarde para um corte mais abrupto, se confessou incapaz de abandonar a vida construída e partir para uma outra vida. Na verdade, nem tinha outra vida, tinha apenas o vazio, apenas um futuro sem nada, 40 anos e um futuro sem nada. Estupefata, ela não acredita ainda, não entende, se esbate na falta de uma explicação lógica. Desejou tanto um motivo real: uma outra mulher, as costumeiras e masculinas idas aos bares, aos puteiros, desejou até mesmo a violência, se ele tivesse batido nela, qualquer coisa que a colocasse de novo na vida, mas isso? Um marido covarde, que se enfeia para ser rejeitado?Ele esboçou um sorriso, talvez até uma lágrima, e saiu, feio, pela porta dos fundos. Ela sentou-se no sofá, olhou a casa vazia, olhou-se vazia e chorou. Tinha também 40 anos. Estava separada no dia 27 de abril de 2010.

E o pior, separada num dia que não rima.

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