Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com
JOSÉ NÊUMANNE PINTO
Coluna de 13/6/2012
Livro de Gilmar Mendes esmiúça luta contra arbítrio oculto
Em Estado de Direito e Jurisdição Constitucional, ministro expõe posições que tomou no Supremo em nome do Estado de Direito
O livro Estado de Direito e Jurisdição Constitucional 2002-2010, do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, publicado pela Editora Saraiva em parceria com o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), relata um momento de capital importância para a cidadania no Brasil de hoje. Trata-se de um cartapácio de 1.451 páginas, impresso em papel bíblia em formato 16/23, a R$ 160, e não pode ser lido como uma peça de ficção nem um manual de autoajuda. Aliás, autor e editores não devem sequer esperar que o volume seja lido do começo ao fim, como qualquer outro livro. É tipicamente um compêndio de consultas e foi feito para que o leitor tenha acesso a julgamentos relevantes feitos no STF nos oito anos que abarca. A vantagem é que o texto não foi lavrado em “jurisdiquês”, idioleto que dificulta sua compreensão, mas na velha flor do Lácio que Camões engendrou.
Com clareza e erudição, Gilmar Mendes expôs no livro as posições que tomou em nome de conceitos fundamentais à sobrevivência do Estado Democrático de Direito, mesmo pondo a cara para bater em temas de pouco agrado e até de desagrado total da maioria, motivando, por isso, ondas de protestos de seus críticos. A obra é enciclopédica, ao abordar temas como os riscos da instalação de um Estado policial pela intromissão da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em investigações da PF, crimes ambientais, liberdade de imprensa e profissão de jornalista, moralidade administrativa e nepotismo, demarcação de terras indígenas, plano Bresser, trabalho escravo, célula tronco, renúncia de mandato parlamentar e sucessão pelo suplente, papel do Senado Federal, estatuto da criança e do adolescente, foro especial por prerrogativa de função, liberdade de expressão e crime de racismo, direito à saúde, abuso no uso de algemas e exposição vexatória do preso (suspeito ou não), além das operações Castelo de Areia, Navalha, Furacão e Satiagraha.
A democracia foi uma dura conquista do povo brasileiro depois de conviver anos com o arbítrio de uma ditadura militar e tecnocrática e convivido com a demagogia do populismo nos interregnos democráticos de uma história republicana em que o arbítrio foi a regra e a liberdade, exceção. O desmoronamento da ditadura e a instalação de um Estado Democrático de Direito digno desta denominação, contudo, levaram à ilusão de que este passado não voltaria. Mas os agentes do Estado, mesmo sob a vigência das liberdades políticas, buscam sempre impor uma espécie de arbítrio oculto na tentativa permanente de reduzir os direitos do indivíduo em detalhes de aparente insignificância no dia-a-dia. A manutenção da democracia pelo respeito aos direitos soberanos do cidadão é tão difícil quanto a derrubada da ditadura e o livro de Mendes esmiuça os bastidores destes conflitos permanentes neste nosso período de transição.
Trata-se, portanto, de um relato histórico de dentro e do alto da resistência do Estado Democrático de Direito às sedutoras investidas do absolutismo e da “democratice” demagógica. No texto, fluente apesar de embasado em profundo conhecimento da técnica jurídica, o cidadão comum - e não apenas os profissionais do Direito, para os quais sua leitura é indispensável, e historiadores e sociólogos, pelo que contém de informação séria -, conhecerá a guerra renhida travada diariamente para que os direitos que conquistou sejam mantidos e respeitados.
O leitor precisa ter sempre presente o fato indiscutível de que os julgamentos proferidos por Gilmar Mendes no STF de 2002 a 2010 não são perfeitos e indiscutíveis, pois o ministro é um ser humano e, como tal, passível de erro como qualquer um de nós. No entanto, a defesa que fez de suas convicções e de alguns direitos inalienáveis das partes dos processos que julgou na última instância foram coletados e impressos numa ajuda à compreensão do tempo em que vivemos. E neste é necessário preservar a memória da luta pela liberdade do indivíduo, ameaçada pelo peso e pela força repressora e invasiva do Estado. Concordando ou discordando com as ideias do autor, o leitor deve ter em conta que a democracia não persegue a perfeição, mas o convívio civilizado com o imperfeito.
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