Coluna de 26//6/2012
(próxima coluna: 9/7/2012)
Ficão x biografia
Uma das questões mais comuns a respeito da escrita literária, é a aproximação entre o que está escrito com a vida pessoal do autor. Para muitos leitores, a escrita revela-se sempre biográfica, expressão daquilo que o autor viveu, ou no caso dos poetas, sentiu.
Mas, o que seria uma escrita biográfica? Quais os limites da verdade biográfica? Existe a possibilidade de ser literário e biográfico ao mesmo tempo, sem que se percam as características inerentes do literário e do biográfico? Toda escrita, mesmo a mais ficcional não teria, sob a casca do literário, algo de vida de seu autor? É possível mentir completamente, ou dizer a verdade completamente? São algumas das inúmeras questões que perpassam esse assunto e que por isso não dá para pensá-lo de forma tão definitiva, tão preto no branco. Os tempos de agora são líquidos, indecidíveis, cheios de cisões, de dobras, só para usar alguns termos da filosofia contemporânea, portanto já não se há tanta certeza ou clareza a respeito de nada. Um relato assumidamente ficcional pode carregar mais da vida de seu autor do que um relato assumidamente biográfico. E desde que Flaubert disse “Madame Bovary sou eu” as coisas, que já não eram muito claras, ficaram cada vez mais opacas.
Na literatura brasileira, um bom exemplo de atuação nessa fronteira indecidível entre biografia e ficção é a obra de Lourenço Mutarelli. Sobretudo, a obra inicial, quando ele ainda estava mais ligado à história em quadrinhos. Atualmente, com uma produção mais voltada à literatura, Mutarelli anda, perigosamente, de mãos dadas com o convencional, ou, podemos dizer, com o ficcional.
Um dos principais artifícios usados por Mutarelli nas HQs era o uso contínuo de sua vida pessoal como elemento literário. O uso constante do auto-retrato, ou auto-desenho, quase sempre numa imagem extremada, caricaturizada de si mesmo, mas fortemente ligada à sua vida pessoal. Mutarelli, como é comum aos artistas, diz que a sua obra tem “muito de mim, mas não só de mim”. Porém, em alguns casos, ele não se limita a apenas colocar sua imagem na ficção que produz, ele traz também a sua família. Em uma de suas melhores HQ, chamada “Caixa de Areia”, a mulher, o filho, o gato e o editor são chamados a participarem como personagens. Mutarelli estraçalha a fronteira e joga ao leitor a responsabilidade de ler suas histórias como referências biográficas ou apenas uma ficção que usa algumas cascas da realidade para se sustentar. A obra de Lourenço Mutarelli é uma experiência, entre tantas outras, que trabalha não no sentido de esclarecer o leitor, mas colocá-lo diante de uma situação de enfrentamento de suas certezas.
Aos leitores que acreditam que os escritores revelam sua vida a cada linha, um aviso: nós mentimos. Aos que acreditam sermos uns mentirosos, outro aviso: não temos outra coisa para contar a não ser a nossa vida.
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